O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela. Por Gilvander Moreira[1]
Celso Frateschi em O GRANDE INQUISIDOR. Foto: Divulgação – Ágora Teatro
A convite do ator Celso Frateschi
assisti e comentei a peça teatral “O
Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, que é de leitura indispensável. O Grande Inquisidor é um pequeno, mas
denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski:
“Os Irmãos Karamazov”, publicado como uma série no Mensageiro Russo, de janeiro de 1879 a novembro de 1880. Assistir à
belíssima apresentação de O Grande
Inquisidor com Celso Frateschi foi para mim um momento inesquecível e fez
passar um filme na minha cabeça. Recordou-me as muitas vezes em que, como a
maioria do povo brasileiro, eu também senti na pele estar sob certo tipo de
inquisição por algum Grande Inquisidor. A peça O Grande inquisidor me fez recordar quando eu trabalhava em
latifúndios como família agregada. Ao
ver nossa produção, fruto da mãe terra e do nosso trabalho, sendo levada no
caminhão do fazendeiro, dois gritos irrompiam no meu coração: “Isso não é justo!”,
“Isso não é justo!” e “Deus não quer
isso!”, “Deus não quer isso!” Esses
gritos retinam nos meus ouvidos para sempre. Marcado por essa experiência de
ser explorado pelo latifúndio e por latifundiários, tenho dedicado minha vida a
lutar por justiça no seu sentido mais profundo: justiça agrária, justiça
urbana, justiça ambiental e respeito aos direitos humanos fundamentais. A
violência perpetrada pelo Grande Inquisidor, seja ele cardeal, latifundiário ou
outro carrasco gera indignação nas pessoas violentadas.
Andar na
contramão do Grande Inquisidor exige muito amor, paixão pela causa dos
violentados e coragem. Segundo Dostoiévski, em O Grande Inquisidor, em Sevilla do século XVI, na Espanha, em
tempos de chumbo e auge da mais terrível inquisição, Jesus Cristo reaparece
esbanjando ternura, amor, afabilidade, com uma luz irradiante de amor que
humanizava o ambiente. Porém, Jesus é submetido a um cruel processo
inquisitorial por um cardeal. Eis uma metáfora da nossa realidade de mundo sob
cruel superexploração, em 2020, e especialmente do Brasil, país imerso
novamente em violência generalizada, tortura, com relações sociais
escravocratas e ditadura, de mil formas. Muitas afirmações e perguntas de O Grande Inquisidor são emblemáticas e nos
interpelam, tais como: “Por que vieste para nos estorvar?”, “Como pode um
rebelde ser feliz?”, “Que liberdade é essa se a obediência é comprada com pão?”,
“Os homens anseiam por comunidades de culto”, “Tu vieste só para os eleitos?”,
“Quem retém o pão em suas mãos?”, “Mesmo que haja outra vida, não será para
escravos obedientes”, “Não digas nada”, “Cala-te!”, “Te julgarei e te
condenarei como o maior dos hereges”, “Não existe nada mais insuportável para a
humanidade que a liberdade”, “Nada é mais irresistível que a atração do pão”, “Existem
três poderes, três forças na terra: o milagre, o mistério e a autoridade”, “O
homem busca muito mais o milagre do que Deus”, “Tu mereces ser queimado na
fogueira da inquisição”, “Os grãos de areia são fracos, mas se amam”, “Amanhã
eu te queimarei”, “Vá e não voltes nunca mais!”, e tantas outras afirmações e
perguntas que cortam como navalha.
Realmente, há no meio do povo ânsia
imensa por “comunidades religiosas de culto”. O fundamentalismo religioso do
neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas
eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma
falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas
em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social
do Evangelho de Jesus Cristo. Orar faz bem, mas não qualquer tipo de oração,
pois há determinados tipos de oração que transferem para Deus responsabilidades
que são nossas.
Faz necessário recordar que o bom pastor
do capítulo dez do Evangelho de João, na Bíblia, convida as ovelhas para saírem
do curral e as conduz para verdes pastagens, para campo aberto – espaço de
liberdade, não abstrata, mas com condições objetivas que viabilizem o ser livre
efetivamente. Lamentavelmente, no neopentecostalismo brasileiro, os falsos
líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado
nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim,
aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor,
chegando a aberrações tais como furtar do povo doações para construir templos
luxuosos e até sino de 17 milhões de reais. Absurdo! Idolatria! Não esqueçamos:
o neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América
Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro Os demônios descem do norte, e fomentado
pelos papas João Paulo II e Bento XVI.
Há vários sentidos para Religião: no
sentido original, Religião vem de re-ligar, re-ler, re-eleger e, assim, pode
nos religar com o mistério de amor infinito e profundo que nos envolve com o
próximo, com todos os seres vivos e com o nosso Eu mais profundo. Entretanto,
com o andar histórico, as Religiões se tornaram Instituições com dogmas,
doutrina, funcionários e tendem a se autorreproduzirem em estruturas de poder
opressor.
Parece-me que Dostoiévski critica de forma contundente não o ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré, vista da perspectiva da Teologia da Libertação, mas critica a versão do ensinamento e da práxis de Jesus, segundo a teologia dogmática clássica, que sob muitos aspectos deturpa o que o Galileu revolucionário ensinou e testemunhou. Dostoiévski denuncia de forma implacável a Igreja Instituição e a diabólica inquisição que excomungou Jesus de Nazaré revolucionário, porque ele estorvava e estorva os podres e violentos poderes. Para se deleitar em podres poderes e comodismo, muitos não mudam de vida como propõe Jesus, mas mudam Jesus adocicando-o ou enquadrando-o a escusos interesses. Se Jesus voltasse agora, ele não teria lugar na estrutura do próprio Cristianismo, como tanta gente marginalizada e violentada na sua dignidade. Por exemplo, as três palavras com as quais, segundo O Grande Inquisidor, se domina todos: “milagre, mistério e autoridade”. Para a Teologia da Libertação, milagre não é mágica, não é algo feito por Jesus que seja impossível de ser feito por outra pessoa humana. Milagre não estupra a natureza. “A graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino. Jesus não tinha um superpoder sobrenatural inacessível aos outros humanos. Jesus não nasceu Cristo, mas se tornou Cristo, porque se humanizou de forma esplêndida. Milagre é um processo de solidariedade gratuita que questiona dogmas, leis e regras que geram marginalização e, por isso, liberta as pessoas, mas sempre nas entranhas das relações humanas e sociais. Um aparente bom pastor, mas na realidade inquisidor, opressor, dominador, muitas vezes invoca o mistério para impor um “cale-se!”, porém diante do mistério, conforme dizia o filósofo Wittgenstein, “devemos nos calar somente após dizermos a última palavra”. Assim como Jesus revolucionário estorva os Grandes Inquisidores da história, sigamos estorvando os inquisidores da atualidade. (Obs.: Na próxima semana publicaremos a 2ª parte deste texto).
Belo Horizonte, MG, 29/9/2020.
Obs.:
Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1
- Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos
excluídos, outro bom samaritano, em entrevista a frei Gilvander – 09/9/2020.
2
- Mov. Negro, Quilombolas e Pescadores do Baixo São Francisco se REBELAM contra
mais barragem. Vídeo 6 – 22/9/2020
3
- "O anjo das ruas", Padre Júlio Lancellotti com André Trigueiro -
22/9/2020
4
- Padre Júlio Lancellotti, uma vida dedicada a amar e defender os irmãos em
situação de rua - 19/9/20
5
- “Saga do Velho Chico”, de Quitéria Gomes. NÃO à barragem de Formoso,
Pirapora/MG –Vídeo 5 – 07/9/20
6
- "Basta de barragens!", grita o Povo do Baixo São Francisco. UHE de
Formoso, NÃO! Vídeo 4 - 07/9/2020
7
- Muitos Gritos do Brasil contra a construção da Barragem de Formoso, em
Pirapora/MG -Vídeo 3 -07/9/20
8
- "Não aceitamos barragem de Formoso em Pirapora/MG", gritam no Baixo
São Francisco -Vídeo 2 – 07/9/20
9
- Povo do Baixo São Francisco NÃO ACEITA mais barragem: Não à de Formoso,
Pirapora/MG-Vídeo 1 -07/9/20
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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