As pandemias do
coronavírus e da política: qual mata mais?
Por Gilvander Moreira[1]
Dolorosamente, a pandemia do novo
coronavírus está se alastrando por todo o mundo e por todo o Brasil. No mundo,
já são mais de 3 milhões de pessoas infectadas pelo novo coronavírus e mais de
210 mil mortos. Milhares de famílias já foram golpeadas. Muitos continuam, de
forma irresponsável, se expondo e expondo muita gente ao vírus perigoso, e letal
para muitas pessoas que são atingidas por ele. O desgoverno federal continua
agindo ou se omitindo de forma criminosa ao enfraquecer ainda mais o SUS[2]
nos últimos anos com a aprovação da PEC[3] 95;
com a expulsão de 10 mil médicos cubanos que ajudavam a cuidar de 50 milhões de
pessoas no Brasil; ao não testar as pessoas para ver se estão com COVID-19 ou
não; ao não providenciar respiradores em quantidade e qualidade suficiente para
atender a todas as pessoas que necessitarem e, finalmente, ao divulgar números
oficiais sobre a pandemia que não refletem a realidade. Há uma enorme subnotificação.
Pesquisas indicam que o número de mortos ou de pessoas que estão com a COVID-19
pode ser 10 vezes maior que os dados oficiais divulgados. Ou seja, se falam em
5 mil mortos por COVID-19, pode ser que na realidade já tenham morrido 50 mil.
Se falam em 60 mil com o coronavírus, pode ser que 600 mil pessoas estejam
infectadas, sem o saber. Para cada pessoa já diagnosticada com COVID-19 pode
ser que existam outras 10 com coronavírus que seguem disseminando o vírus por
desconhecimento de que se encontram infectadas. Estima-se que a pandemia do
novo coronavírus no Brasil tenha atingido apenas 5% da sua capacidade de
alastramento.
Diante dessa realidade dramática que
está apunhalando milhares de famílias, considero criminosas as posturas de
prefeitos, de governadores, do desgoverno federal, de certos pastores e certos
padres que estão flexibilizando o distanciamento “social” (físico, melhor
dizendo) e permitindo a volta à “normalidade” que causou a pandemia. Sem
quarentena, milhões de trabalhadores, de desempregados e subempregados, de
empobrecidos periféricos poderão morrer. Já está comprovado que os meios mais
eficazes que temos para salvar vidas, até que se descubra remédio e/ou vacina, são:
a quarentena, ficar em casa, lavar as mãos com frequência, usar máscara sempre
que tiver que sair de casa e manter em funcionamento apenas as atividades
econômicas essenciais para a vida social. Grandes empresários, adoradores do
ídolo capital, estão desesperados por ver parte da classe trabalhadora em casa,
na prática em “greve geral”. Sem a força dos trabalhadores não há como os
grandes empresários acumularem lucro.
Além da pandemia do novo coronavírus, temos
que enfrentar no Brasil outra “pandemia”: a da política, em especial a do
desgoverno federal, que cotidianamente submete o povo a posturas cada vez mais
deprimentes, vexatórias, fascistas, milicianas, fazendo até deboche, absurdo
dos absurdos e cometendo crimes, tais como: Improbidade Administrativa, Crime
de Responsabilidade, Prevaricação, Obstrução da Justiça, de forma contumaz, por
reiteradas vezes. O despresidente já cometeu muitos crimes de responsabilidade –
a lista de indícios é grande! - e se tornou motivo de chacota internacional e,
pior, violentando o povo, a Amazônia, os biomas, os povos indígenas, os
quilombolas, as populações periféricas e empobrecidas, enfim toda a classe
trabalhadora. Integrantes do Congresso Nacional e do STF têm sido cúmplices e coniventes
com essas atitudes do desgoverno atual. Já passou da hora de dar encaminhamento
aos 29 pedidos de Impeachment de Bolsonaro, já protocolados na Câmara Federal.
O que se ouve nas ruas é “Fora, Bolsonaro!”. O antipresidente e bolsonaristas
desdenham da Constituição Brasileira e da democracia ao defenderem, em
manifestações públicas, o fechamento do Congresso Nacional e do STF[4] e ao
clamarem por golpe para reimplantar nova ditadura com AI-5[5],
repressão e eliminação de vez da democracia e das liberdades. O caminho ético e
democrático não é fechar o Congresso Nacional e o STF, mas purificá-los. Se
tivéssemos instituições do Estado éticas cumprindo de fato sua missão, nos três
poderes, quem defendeu publicamente o que a Constituição Federal proíbe já
deveria estar nas barras da justiça e preso.
Desde a
época da ditadura militar-civil-empresarial que se iniciou dia 31 de março de
1964, abocanhando a terra em propriedade privada, os capitalistas promoveram a
mecanização da agricultura e, assim, realizaram o que muitos chamaram de
‘revolução verde’ em contraposição à ameaça que defensores do status quo capitalista chamaram de
‘revolução vermelha’, que era a luta pela implantação do socialismo no país, o
que incluía fazer as reformas de base: reformas agrária, urbana, da educação,
tributária e política. Sob fomento do governo federal, os capitalistas da cidade
levaram todo o arsenal industrial de máquinas com pacotes químicos para a
produção agropecuária. Assim, no livro Conflitos no Campo
Brasil 2015, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Carlos Walter Porto Gonçalves e colegas pesquisadores
apontam a construção de uma “agricultura sem agricultores” e produtora de
sem-terra. Dizem eles: “ensejou um modelo
agrário/agrícola que mereceu a fina caracterização de “uma agricultura sem
agricultores”, pelo economista argentino Miguel Teubal, conformando com muita violência.
[...] não é só grande produtora de madeira (eucalipto), de grãos e de carnes,
mas também de muitos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra ao
concentrar muita terra em poucas mãos” (PORTO-GONÇALVES; CUIN; LEAL; NUNES
SILVA, 2015, p. 90). Além de concentrar a terra em poucas mãos, fortalecendo a
latifundiarização do país, a ditadura militar-civil-empresarial promoveu um
imenso êxodo rural, empurrando o povo para sobreviver nas novas senzalas, que
são as favelas, nas periferias das grandes cidades. Criaram-se as condições
objetivas para se instaurar e amplificar a violência no tecido social. Alastraram-se
as monoculturas e impiedosamente se implantou um modelo econômico no campo marcado
pela devastação socioambiental em progressão geométrica, submetendo o povo, por
exemplo, a uma epidemia de câncer, por causa do exagero no uso de agrotóxicos para atender à exigência do agronegócio de
produzir mais e mais a qualquer custo.
Dia 17
de abril último – lembrando os 24 anos do massacre de Eldorado dos Carajás, no
Pará -, a CPT lançou seu 34º livro “Conflitos no Campo Brasil”. Na edição de
2019, em 252 páginas, a CPT demonstrou o crescimento assustador da violência no
campo e do ódio contra os pobres: aconteceram no Brasil 1833 conflitos no campo
em lutas por Terra, Água e Direitos. Maior número em 15 anos, com um aumento de
23% em relação a 2018, o que representa 5 conflitos por dia, em média. Esses
conflitos envolveram 859.023 pessoas, a grande maioria, em conflitos
relacionados à luta pela terra (1.284 conflitos), seguido de lutas pela água
(489 casos). Os números da violência no campo, no Brasil, em 2019, demonstram
uma tremenda violência se abatendo sobre o campesinato: 32 assassinatos de
lideranças camponesas, entre os quais, 9 indígenas (30%) - maior número nos últimos dez anos; 1.254
conflitos de luta por terra; 489 conflitos por água, o maior índice já
registrado pela CPT, sendo 61% ocorridos em Minas Gerais, Bahia e Sergipe. Em
relação a 2018, os conflitos por água cresceram 77% em um ano. 39% dos
conflitos por água no Brasil foram causados por mineradoras. 82% dos conflitos
por água aconteceram em territórios de Povos e Comunidades Tradicionais, tendo,
obviamente, o despresidente como promotor e “autorizador” dos mesmos. Em 2019, houve 1.301 manifestações de luta
pela Terra, pela Água e por Direitos (142% a mais em relação a 2018, 3,5 por
dia, o maior número já registrado pela CPT em 34 anos). Esse dado demonstra que
o povo não está resignado, continua na luta por direitos, atuando de diversas
formas. 745 trabalhadores foram libertados de situações análogas a trabalho
escravo, número muito menor do que nos últimos 17 anos, quando eram libertadas
um número muito maior, o que demonstra o desmonte da fiscalização que o
desgoverno federal vem promovendo.
Exceto as áreas
violentadas pelas mineradoras e pelo trabalho escravo, a região que mais sofreu
com os conflitos em 2019, foi a Amazônia, onde se concentraram 60% das disputas
por terra, 71% das famílias envolvidas, 51% das despejadas, 84% das famílias
que sofreram invasão de suas terras ou casas, 84% dos assassinatos, 73% das
tentativas de assassinato, e 79% dos ameaçados de morte. Enfim,
esse diagnóstico da CPT, de 2019, demonstra a necropolítica em exercício, ou
seja, o uso do poder para matar as parcelas mais vulneráveis da população
usando estratégias diversas de aniquilamento sem qualquer preocupação com o bem
comum.
Em Minas Gerais,
em 2019, a CPT registrou: a) 128 conflitos na luta por água, sendo 54 (41,2%) na
região metropolitana, o que demonstra porque Belo Horizonte e a região
metropolitana já estão em crise e em processo de colapso hídrico iminente; b) 32
conflitos na luta pela terra, sendo 11 (28,5%) no norte do estado, o que
demonstra o avanço do latifúndio armado sob fomento do despresidente e de empresários
bolsonaristas; c) 346 trabalhadores foram libertados de situações análogas à
escravidão, sendo 171 (49,4%) no norte do estado, o que demonstra que, onde há
maior poderio do latifúndio e dos latifundiários criam-se as condições
objetivas para submeter trabalhadores a situações análogas às de escravidão.
Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), a fome atingirá mais de 600 milhões de pessoas no mundo
com a crise desencadeada pela pandemia do Covid-19. Estão ameaçados por
projetos de mineração os territórios que produzem alimentos e podem ajudar a superar
a fome. Se o desgoverno federal não for derrubado, podemos ter no Brasil mais
30 mil áreas concedidas às mineradoras, o que violentará mais ainda comunidades
camponesas, indígenas, ribeirinhas e quilombolas que abastecem 70% da produção
de alimentos no país. O povo das cidades também sofrerá cada vez mais, haja
vista a continuidade do antipresidente nas atitudes de descompromisso com a
preservação da vida em suas várias formas.
Em tempo: A
Câmara de Vereadores de Nova Lima, MG, dia 24/4/2020, aprovou lei que reduz em
50% os salários dos vereadores, do prefeito, do vice e dos secretários do executivo
municipal, durante a pandemia do coronavírus. Esse tipo de lei deve ser
aprovada, com urgência, em todas as Câmaras Municipais, em todas as Assembleias
Legislativas, no Congresso Nacional e também no judiciário, de 1ª instância até
o STF. Reduzir os salários de 50% de todos os políticos eleitos, não só durante
a pandemia, mas para sempre, eis a meu ver uma das exigências éticas mais marcantes
deste tempo![6]
Referência.
PORTO
GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN, Danilo Pereira; LEAL, Leandro Teixeira; NUNES
SILVA, Marlon. Bye bye Brasil, aqui estamos: a reinvenção da questão agrária no
Brasil. In: Conflitos no Campo Brasil
2015. Goiânia: CPT Nacional, p. 86-99, 2015.
28/4/2020
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o
assunto tratado acima.
1 - Padre José Ailton: Faz carreata contra a
"Quarentena" quem se preocupa com lucros e não com a vida dos/as
trabalhadores/as - 14/4/2020
2
- No Roda Viva, a jornalista Vera Magalhães recebe o biólogo Atila Iamarino.
3 - Covid-19: Manaus vive cenário de caos nos
hospitais e cemitérios - 26/4/2020
4 - A realidade sobre o número do coronavírus no
Brasil - 26/4/2020
5 - Covid-19/ Pará: 97% dos leitos de UTI da rede
pública estão ocupados - 20/4/2020
6 - Covid-19/Ceará: 100% das vagas de UTI ocupadas e
número de leitos está perto do limite - 20/4/2020
7 - COVID-19: No Amazonas, sistema de saúde do
estado está entrando em colapso - 20/4/2020
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em
Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Sistema Único de Saúde.
[3] Proposta de Emenda
Constitucional que congelou por 20 anos os investimentos em saúde pública.
[4] Supremo Tribunal Federal.
[5] Ato Institucional da ditadura
militar-civil-empresarial que fechou o Congresso Nacional e implementou “anos
de chumbo” com repressão, exílio e perseguição impiedosa a todas as pessoas que
questionassem a ditadura. De 13/10/1968, o AI-5 foi golpe dentro do golpe. Cf.
os livros “Brasil Tortura Nunca Mais”, de Dom Paulo Evaristo Arns (Org.) e
“Batismo de Sangue”, de Frei Betto.
[6]
Gratidão à Carmem Imaculada de
Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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