Profeta
Miqueias, um camponês que clama por Justiça (Mq 1-3)[1].
Gilvander Luís Moreira*
Canto da profecia
de Miqueias
(Música: ‘Se
calarem a voz dos profetas’- Cecília V. Castilho. Letra: Marysa M. Saboya)
2ª
estrofe: MIQUÉIAS, UM PROFETA PARA HOJE
Hoje e
sempre, o Poder tem mil faces: / As armas, força bruta,
O
dinheiro e a falaz propaganda / Que muita gente escuta...
Como,
então, enfrentar as mentiras / E a Verdade a muitos mostrar?
É difícil
em meio às trevas, / Iluminar!
Refrão: Já Miqueias aponta o caminho: / Seguir com
Deus Javé (Mq 6,8)
E encher-nos do Espírito Santo, que vem / E nos
mantém de pé! (Mq 3,8)
Ser Profeta é estar com o povo / Erguendo sempre a
voz
Em denúncia do mal e em anúncio / Do quê Deus faz
por nós!
Introdução: Profecia é sussurro/cochicho de Deus.
Os
oráculos proféticos, normalmente, são introduzidos ou finalizados com uma
fórmula característica: “Assim disse Javé...”
ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23). A
expressão “ne’m YAHWEH”, em hebraico,
geralmente traduzida por “Oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”, significa
sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da profetisa. Para entender
um cochicho, um sussurro, é preciso fazer silêncio, abrir os ouvidos, prestar
muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser amiga/o. Logo, Deus não
falava claramente aos profetas como nós, muitas vezes, pensamos. Deus fala hoje
para - e em - nós, do mesmo modo que falava aos profetas e às profetisas dos
tempos bíblicos. Deus cochicha (sussurra) em nossos ouvidos, sempre a partir da
realidade do injustiçado, enfraquecido, oprimido, na trama complexa das
relações humanas e estruturas sociais, políticas e econômicas.
Precisamos
colocar nossos ouvidos e nosso coração pertinho do coração dos violentados,
escutando-os, para que nossas palavras possam refletir algo da vontade do Deus
da vida. Mais que fazer cursos de oratória, precisamos de cursos de “escutatória”. Para ouvir os clamores
mais profundos dos injustiçados, é necessário conviver com eles. Assim agiram
os profetas e as profetisas. O profeta Miqueias faz muitas denúncias veementes,
mas também apresenta propostas de mudança para superação da injustiça que se
abate sobre o país e sobre o povo. É o que estamos vendo na leitura de Mq 1 a
3, (artigos 2 e 3).
1. Profeta Miqueias, um camponês que clama por
justiça.
Camponês de origem e comprometido na missão
profética, Miqueias captou os sussurros/cochichos do Deus da vida no final do
século VIII a.E.C., quando o território de seu povo estava sendo ameaçado e
explorado, no Sul, e devastado, no Norte, pelos assírios imperialistas.
Para Miqueias, a cobiça e as injustiças sociais
deixam Deus possuído por uma ira santa:
Ø “São vocês os inimigos do meu povo: de quem
está sem o manto, vocês exigem a veste” (Mq 2,8).
E HOJE? - Os sem-terra, os sem-casa, a juventude
empobrecida, de periferia e negra, as mulheres vítimas de violência, o
meio-ambiente de hoje: todos sugados e espoliados.
Ø “Vocês expulsam da felicidade de seus lares as
mulheres do meu povo” (Mq 2,9a).
E HOJE? - Milhares de meninas que são empurradas
para a prostituição infanto-juvenil, coisificadas, profanadas no sagrado de
seus corpos.
Ø “Vocês tiram dos filhos a liberdade que eu lhes
tinha dado para sempre” (Mq 2,9b).
E HOJE? Cerca de
trinta mil trabalhadores submetidos, ainda, à situação análoga à de escravidão
no Brasil – conforme denuncia a Comissão Pastoral da Terra (CPT). E mais de 50 mil jovens assassinados
no Brasil anualmente, no meio da guerra civil não declarada, imposta pelo
tráfico e não combatida pelo Estado e nem pela classe dominante de forma a
superar as causas - violência estrutural com omissão de muita gente, algo que
beira a cumplicidade com efeitos devastadores.
Após se libertar das garras dos faraós no Egito e
marchar 40 anos pelo deserto, o povo oprimido da Bíblia conquista, pouco a
pouco, as terras mais montanhosas da Terra Prometida, pois as planícies férteis
estavam em mãos de grileiros: “os cananeus”, reis das cidades-estados. Os
territórios foram sorteados fraternalmente, para que cada família tivesse o seu
lote. Fizeram uma espécie de reforma agrária, de socialização da terra. Mas
após alguns séculos, os enriquecidos, pouco a pouco, invadem cada vez mais os
campos e os territórios. Assim, multidões de sem-terra foram jogados na
miséria, impossibilitados de terem a sua parte na terra do povo de Deus.
Vindo do campo, o profeta Miqueias, ao chegar à
capital – Jerusalém -, se defronta com os enriquecidos - políticos
profissionais, empresários especuladores e religiosos funcionários do sagrado -
e os acusa de roubar casas e campos para se tornarem latifundiários.
Ø “Ai daqueles que, deitados em seus leitos de
marfim, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já
o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam. Tomam as casas do povo, oprimem o homem, sua
família e sua comunidade; roubam a herança deles, a perspectiva de futuro”
(Mq 2,1-2).
E HOJE, provavelmente Miqueias denunciaria que, como
fruto da injustiça social, do capitalismo, da especulação imobiliária e da
falta de reforma agrária, o déficit habitacional cresce nas cidades e, por
isso, crescem as ocupações urbanas. Uma senhora, moradora de ocupação urbana,
ameaçada de despejo, pegou o microfone e gritou: “Queremos moradia e não apenas o direito à moradia.” Esse grito nos
faz pensar. Políticas habitacionais populares estão mais em discursos do que na
prática. Mesmo com o Programa Minha Casa Minha Vida o déficit habitacional
continua crescendo, por causa da especulação imobiliária que aumenta o preço
dos aluguéis transformando-os em cruz pesadíssima, devido ao crescimento da
população, a falta de reforma agrária e, pior, com o fortalecimento do agronegócio
que continua expulsando o povo do campo para as periferias da cidade. Direitos
fundamentais, como o de morar com dignidade, vêm sendo, há muito tempo,
violados ou pouco atendidos.
Miqueias adverte, porém, que as injustiças não
ficarão impunes. Nas entranhas da história – fatos e acontecimentos – Deus fará
justiça (cf. Mq 3,12), mas, recordemos sempre: a justiça de Deus é a partir da
misericórdia e do amor. Não é a justiça de certos fariseus e nem dos saduceus,
que eram grandes proprietários de terra que seguiam a teologia da prosperidade.
Miqueias mostra que a riqueza dos que detêm o poder na cidade se baseia na
miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo.
Ø “Essa gente tem mãos habilidosas para
praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a
sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais
correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o
dia do castigo chegou: agora é a ruína deles.” (Mq 7,3-4).
No entanto, o profeta Miqueias anuncia, apesar de
tudo, uma esperança:
Ø “Em um campo em ruínas, na Samaria, uma
plantação de vinhas – lavouras – será
feita.” (Mq 1,6).
Também, HOJE,
há ruínas e destruição, mas a VIDA se erguerá a partir dos escombros!
2.
Miqueias guarda memória subversiva: no início, estavam as mulheres lutadoras.
As mulheres parteiras do Egito –
a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Ex 1,8-22) - diante de um Ato
ditatorial (Medida provisória = “Decreto-Lei” do faraó) que mandava matar as
crianças do sexo masculino, se organizaram, fizeram greve e resistiram com desobediência
civil-religiosa-política. “Não vamos
respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer
respeito à dignidade humana e não concorda com a matança de crianças e com
nenhuma opressão” - diziam em seus corações muitas Mulheres do “Sistema de Saúde” do Egito. Diz a
Bíblia:
Ø “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou
numeroso e muito poderoso” (Ex 1,20).
Isto é, o
povo crescia em quantidade e em qualidade. Miqueias foi um discípulo dessas
mulheres parteiras do Egito, que, por rebeldia, viabilizaram não apenas o
nascimento de Moisés, o libertador, e de muitas outras crianças, mas também, e
principalmente, foram imprescindíveis para desencadear o processo de libertação
do povo injustiçado.
E HOJE? São ainda legítimos herdeiros do Movimento das
Parteiras do Egito: o Movimento das Mulheres Camponesas, a Marcha Mundial das
Mulheres, as guerreiras das ocupações e o Movimento Feminista etc. O mesmo Deus
que impulsionou as parteiras estava com as mil Mulheres da Via Campesina que
expuseram a farsa da Aracruz Celulose em 08 de março de 2006[2] ao destruírem
mudas de eucaliptos. Ontem, lutavam contra o império dos faraós; hoje, lutam
contra o império das multinacionais.
3. Jesus de Nazaré, outro profeta Miqueias que se
tornou Cristo.
Jesus, o galileu de Nazaré, se tornou Cristo, o ungido e filho de Deus. Camponês como o
profeta Miqueias, Jesus de Nazaré deve ter feito muitos calos nas mãos, ao
trabalhar no cabo da enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai, José. Os
evangelhos de Mateus (Mt 2,6) e de Lucas (Lc 2,3-7) fazem questão de dizer que
Jesus nasceu em Belém, (Betlehem), em
hebraico, “casa do pão” para todos), pequena vila do interior. “És tu, Belém, a menor entre as aldeias de
Judá, mas é de ti que virá o Salvador”, diz o evangelho de Mateus (Mt 2,6),
resgatando a profecia de Miquéias que dizia:
em Belém, o menor dos clãs de Israel, nasceria o Libertador/Salvador
(cf. Mq 5,1).
Dizer que Jesus nasceu em Belém, cidade pequena do
interior, é dizer nas entrelinhas que Jesus não
nasceu na capital, Jerusalém e sim
que Jesus vem do meio dos pequenos, é
dizer que Jesus nasceu na “casa do pão” – na “padaria” – logo, é “pão da vida”-
segundo o autor do quarto evangelho bíblico.
4. Miqueias nos passa a tocha da profecia
Miqueias se inspira nas mulheres lutadoras do
passado, no movimento das parteiras. Miqueias se tornou fonte de inspiração
para Jesus de Nazaré e para as primeiras comunidades cristãs, através dos
evangelhos de Mateus e de Lucas.
E HOJE? Atualmente, também nós somos convidados/as
carinhosamente e desafiados a sermos outras parteiras, outros Miqueias, outro
Jesus de Nazaré.
Inspirados
e inspiradas em Miqueias, podemos dizer que é um erro grave pensar que polícia
irá resolver problemas sociais. Polícia é para resolver e reprimir crimes. As
injustiças não se superam, de forma justa, com repressão. As lutas coletivas do
povo pobre - que se expressa nas ocupações do campo e nas ocupações urbanas -
são lutas por direitos constitucionais e como tais devem ser respeitadas. Os
policiais, a partir de suas chefias e autoridades, devem ter sempre em mente
que são também trabalhadores. Não estão obrigados a cumprir ordens contrárias à
lei maior do país que é a Constituição e contra a Lei de Deus, que diz: Não matarás! Condenar pessoas pobres,
portanto vulneráveis, a tamanha violência, como a retirada de suas casas, é o
mesmo que condenar à morte: fere a ética, fere a dignidade de toda a
humanidade, fere de morte o próprio Estado de Direito. Miqueias alerta a todos
os/as funcionários/as do Estado, das instituições e das empresas:
“Não sejam meros instrumentos que fazem funcionar a
máquina de moer vidas, que é o capitalismo. Ouçam suas consciências. Não se
escondam simplesmente detrás do ‘se é ordem, tenho que cumprir’. Não abram mão
da ética e da justiça!” Eis o que diria Miqueias, se estivesse,
corporalmente vivo, no nosso meio.
O profeta Miqueias nos inspira para entendermos como a classe dominante
se relaciona com os pobres: adora os pobres enquanto esses estão ajoelhados, de
mãos estendidas, contentando-se com migalhas, e, no mundo do trabalho,
oferecendo seu suor e sangue para construir tudo o que existe e faz funcionar a
cidade. Mas quando os pobres se unem, se organizam, “metem o pé no barranco” e se rebelam - como fez o povo da Bíblia
escravizado pelos imperialismos dos faraós no Egito, dos assírios, dos
babilônios, dos persas, dos gregos e dos romanos, como fez Jesus de Nazaré ao
pegar um chicote e expulsar os vendilhões do templo, como fez Zumbi dos
Palmares, Dandara, Gandhi, Luther King, Che Guevara e tantos outros - os
poderosos tremem de medo ao ver o seu edifício da opressão ameaçado de
desmoronar como um castelo de areia.
O próprio fato de Miqueias fazer as denúncias já é um sinal de
esperança, pois se ninguém denuncia as injustiças, elas vão se avolumando e se perpetuando.
Logo, denunciar as injustiças é a antessala
da construção de projetos de esperança.
Venham todos, venham todas! Vamos participar das lutas coletivas por justiça e,
assim, construir a justiça de Deus no mundo.
VAMOS
REFLETIR?
1. Quais
são as nossas propostas de ação que garantam a construção de um Brasil justo e
de uma fé comprometida e engajada na vivência do direito, do amor e da
solidariedade?
2. Como a
espiritualidade de Miqueias pode nos inspirar e nos encher de coragem para
denunciarmos as injustiças e anunciarmos a esperança do projeto de Deus?
3. O que
fazer para nos engajarmos na desconstrução de uma cultura de violência e na
construção de uma cultura de justiça e paz?
[1] Este artigo está publicado no livro MOREIRA,
Gilvander Luís et alli. Em tempos difíceis,
o profeta Miqueias aponta saídas: uma leitura do livro de Miqueias feita pelo
CEBI-MG. São Leopoldo/RS: CEBI, 2016, p. 37-42.
* Frei e padre da Ordem dos carmelitas;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma,
Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, do CEBI, de CEBs
e do SAB; E-mail: gilvanderufmg@gmail.com - www.freigilvander.blogspot.com.br
- www.gilvander.org.br - http://www.twitter.com/gilvanderluis
- facebook: Gilvander
Moreira
[2] Cf. o Vídeo-documentário Rompendo o Silêncio. As mudas passaram a
falar. (Luta das mulheres da Via
Campesina destruindo um viveiro de Mudas da Aracruz Celulose e povos indígenas
do Espírito Santo lutando para resgatar suas terras invadidas pela Aracruz.)
Parabéns Frei Gilvander nos ajude a abrir a cabeça e o coração para fazermos justiça ao povo de Deus. Chega de fé alienada. Abraço. P.e Zé Carlos C.Ss.R
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