terça-feira, 12 de julho de 2022

Livro de Josué no Mês da Bíblia de 2022. Por Frei Gilvander

 Livro de Josué no Mês da Bíblia de 2022. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Em Minas Gerais, há mais de 25 anos, um grupo de biblistas do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI-MG)[2] publica anualmente um livrinho que busca ser um Texto-Base sobre o livro bíblico do Mês da Bíblia: setembro. Em 2022, todas as pessoas e comunidades cristãs são convidadas a refletir e a inspirar-se para a caminhada libertadora e ecumênica, especialmente no mês de setembro, sobre o livro de Josué. Já está publicado LIVRO DE JOSUÉ: luta pela terra, dom e conquista: Uma leitura do livro de Josué feita pelo CEBI-MG.

No nosso artigo “TERRA DE DEUS, TERRA DO POVO: DOM E CONQUISTA”, com o subtítulo “A luta para conquistar e partilhar a terra no livro de Josué e nos dias de hoje”, analisamos a luta pela terra e sua partilha entre os camponeses e camponesas, no livro de Josué, na Bíblia, e nos dias de hoje, tendo um olho na realidade do campesinato brasileiro na luta pela terra e outro olho no livro de Josué. Mostramos um pouco da luta pela terra nos dias de hoje e, após, apresentamos várias chaves de leitura para compreendermos a luta pela terra no livro de Josué como dom e conquista. Analisamos se os líderes da luta pela terra, segundo o livro de Josué, podem receber terra. Destacamos a visão mística da luta pela terra e o protagonismo das mulheres no volante da luta pela terra. Analisamos ainda duas questões: a) Que tipo de fé e que tipo de Deus fortalecem a luta pela terra? b) Josué foi mesmo o grande líder que coordenou todas as lutas pela terra em Canaã?

Iniciamos a reflexão com a luta pela terra nos dias de hoje. Em 2015, existiam no Brasil 9290 assentamentos de reforma agrária, em uma área de 88.269.706,92 hectares, com 969.640 famílias assentadas conforme dados do INCRA).[3] Também segundo dados do INCRA de 2015, o estado de Minas Gerais, entre 1986 e 2015, contava com 412 assentamentos para fins de Reforma Agrária, onde viviam 15.965 famílias assentadas, em 884.868,24 hectares de área. Isso representa 0,5% da reforma agrária necessária no Brasil, país-continente. Essa conquista exigiu mais de 40 anos de luta do povo camponês, milhares de ocupações de latifúndios que não cumpriam a função social, muita perseguição e mais de 2.000 lideranças camponesas martirizadas. Quanto aprendizado!

Segundo estatísticas cadastrais do INCRA, em 2014, o estado de Minas Gerais possuía como terras potencialmente públicas devolutas 13.398.101 hectares (22,8% do total), em sua maioria grilada por fazendeiros e principalmente por grandes empresas do agronegócio. Muitas terras foram concedidas a grandes empresas “reflorestadoras” (na verdade, eucaliptadoras) por meio de convênios firmados com o Governo do Estado nas décadas de 1970 e 1980. Ainda hoje, essas empresas estão na posse dessas terras públicas utilizando-as, exclusivamente, para a monocultura de eucalipto, mesmo estando vencidos muitos desses convênios.

 Antes de ser invadido pelos portugueses, em 22 de abril de 1500, o povo brasileiro vivia em paz com a biodiversidade no nosso país, tendo de 8 a 40 milhões de indígenas falando, segundo estimativas, mais de 1200 línguas e com culturas altamente diversificadas. Mas, com a invasão portuguesa, iniciou-se aqui a Empresa Brasil. O objetivo foi, desde a chegada dos portugueses, explorar e sugar os bens naturais e, para isso, tornou-se necessário implantar a escravidão. Primeiro escravizaram os indígenas[4], mas com pouco sucesso. Então decidiram importar milhões de trabalhadores negros que foram arrancados da Mãe África, onde haviam nascido em liberdade.

Darcy Ribeiro, na obra O Povo brasileiro, noticia como os engenhos de cana-de-açúcar, a mineração e o cultivo nas monoculturas de exportação foram máquinas de moer vidas. A literatura de José Lins do Rego retrata a realidade das grandes fazendas que, aos poucos, ficaram de “fogo morto” com a mudança dos interesses do comércio internacional e a falta de competitividade. Isso inviabilizou os empreendimentos agrícolas de exportação dos grandes engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste. Mesmo com a decadência, os senhores de terras, vivendo na cidade, continuaram cercando a terra e expropriando os camponeses.

Organizados nas Ligas Camponesas, a partir de 1955, sob a liderança do advogado Francisco Julião Arruda de Paula e com o apoio de militantes do Partido Comunista Brasileiro, durante mais de 10 anos, milhares de camponeses lutaram pela terra de forma aguerrida. O grito era: “Reforma Agrária, na lei ou na marra!” “As Ligas Camponesas tiveram crescimento expressivo até o início de 1964, quando já eram aproximadamente 2.181, espalhadas por 20 Estados da Federação”.[5] Entretanto, dependentes da atuação de sua cúpula, as Ligas foram exterminadas pelos generais por meio da repressão do golpe militar-civil-empresarial de 1964. Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), que ganharam legalidade a partir de 1963, foram, em sua maioria, cooptados pelo Governo Federal mediante os benefícios do chamado “imposto sindical” e da administração do programa FUNRURAL.

A luta pela terra no Brasil, especificamente em Minas Gerais, vem desde o início da invasão do Brasil pelos brancos portugueses. Já são 522 anos de luta pela terra. Milhões de indígenas foram dizimados, mas muitos resistiram, como Sepé Tiaraju, “lutando pelo reconhecimento do regime comunitário de propriedade que fundamenta a sua existência tribal, a restauração da sua identidade social violentada e a afirmação de sua visão de mundo anticapitalista”.[6] Milhões de negros foram escravizados, mas muitos se rebelaram e formaram quilombos, como os liderados por Zumbi dos Palmares e Dandara, no final do século XVII. Movimentos populares messiânicos, tais como o de Antônio Conselheiro, em Canudos, de 1893 a 1897, na Bahia, e do monge José Maria, no Contestado de 1912 a 1916, no Paraná e Santa Catarina, também lutaram pela terra.

(Obs.: No próximo artigo, seguiremos esta reflexão).

 

Referência

CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A Campanha do Contestado. 2ª edição. Florianópolis: Editora Lunardelli, 1979.

CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en AméricaMéxico: Siglo XXI, 1994.

LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição – um sujeito histórico na luta pela Reforma Agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.

MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os Errantes do Novo Século. São Paulo: Duas Cidades, 1974.

QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e Conflito Social (A guerra sertaneja do Contestado, 1912-1916). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A, 1966.

SOUZA, Frederecindo Marés de. O presidente Carlos Cavalcanti e a revolta do Contestado. Curitiba: Lítero Técnica, 1987.

12/7/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG


2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc


3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5


4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters


5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos


6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

[4] Os direitos dos povos indígenas foram violados. CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en AméricaMéxico: Siglo XXI, 1994.

[5] LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição, p. 64.

[6]MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência, p. 40.

terça-feira, 14 de junho de 2022

Luta pela terra: mística e esperança nos jovens. Por Frei Gilvander

  Luta pela terra: mística e esperança nos jovens. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Legenda da Foto: Plantio de árvores pela Juventude Sem Terra nas
escolas do campo. Foto: MST SC

Na minha pesquisa de Doutorado sobre a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana, defendida em 2014, descobrimos aprendizados emancipatórios que socializamos abaixo. O futuro da luta pela terra dependerá muito dos jovens. Antoniel Assis de Oliveira, camponês mestre em Educação do Campo, pondera: “Para cultivar a terra da fazenda Monte Cristo no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, no Assentamento Dom Luciano Mendes, vai precisar de trator e outras máquinas. Não vão bastar a enxada, a foice, o machado e a força dos braços. Os jovens têm mais facilidade de aprender tecnicamente a mexer com essas máquinas. Os idosos que estão lutando aqui no acampamento Dom Luciano terão, com certeza, uma velhice feliz lá no Assentamento Dom Luciano na fazenda Monte Cristo, mas para o desenvolvimento da produção vamos precisar da juventude com sua força e entusiasmo, inclusive para o desenvolvimento do assentamento daqui a vinte anos. Sem a juventude, o futuro da luta pela terra fica comprometido.”

Salvo raríssimas exceções, todos os pais e mães do Acampamento Dom Luciano em Salto da Divisa, MG, foram unânimes em dizer que seus filhos e filhas, que estão hoje morando de aluguel e trabalhando em Belo Horizonte, São Paulo, Porto seguro, Vitória da Conquista e em outras cidades voltarão para se juntar a eles assim que a fazenda Monte Cristo for definitivamente conquistada. O Sem Terra Aldemir Silva me disse dia 22/09/2014: “Nossos filhos estarão conosco assim que conquistarmos a terra. Um dos meus filhos está pagando um salário mínimo de aluguel lá na capital. Está doido para voltar”.  Vários pais, como o camponês Sem Terra Ozorino Pires, já ouviram dos filhos o seguinte: “Pai, assim que o senhor arranjar um pedacinho de terra, eu largo tudo aqui na capital e volto para trabalhar ao seu lado na terra”. Isso traz um novo oxigênio para a luta pela terra. No início da ocupação no Acampamento Dom Luciano Mendes, havia muitos jovens, já com filhos, inclusive. A agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG) Irmã Geraldinha (Geralda Magela da Fonseca) revela porque os jovens não puderam continuar na luta pela terra no Acampamento Dom Luciano: “Muitos jovens não puderam continuar conosco aqui, porque aqui na fazenda Manga do Gustavo – lugar do Acampamento Dom Luciano Mendes - estamos em pouca terra, uma parte é de preservação ambiental e outra parte é um grande lajedo. Não tinha condições de incentivarmos os jovens a continuar aqui. Como ganhar o sustento do dia a dia? Temos que recordar também que quem entra para uma ocupação se torna meio leproso para muitos fazendeiros da região que negam um litro de leite ou a oferecer trabalho. As ameaças e as pressões também dificultaram a permanência dos jovens entre nós aqui no acampamento. Em oito anos de acampamento, vários filhos nasceram também. Se os filhos tivessem sido criados em cima da terra, teriam mais incentivo para continuar, mas se nasceram na periferia da cidade, fica mais difícil abraçar e perseverar na luta pela terra.”

A pedagogia de emancipação humana na luta pela terra passa pela superação do medo de abraçar uma luta coletiva e criar condições subjetivas para se perseverar na luta coletiva por direitos. Quanta sabedoria há em quem está militando na luta pela terra! É preciso saber ouvir atentamente para compreender na linguagem do outro o conhecimento e as convicções mais profundas que os guiam e sustentam na luta coletiva pela terra. Um dos problemas de quem adquire poder econômico, político e intelectual é que muitas vezes perde a capacidade de ouvir atentamente as pessoas. Pensa que já sabe tudo e só precisa ensinar. Ledo engano!

Resgatar e compreender a história do território pelo qual se luta a partir do campesinato expropriado é instrumento imprescindível para viabilizar e fortalecer a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana. No caso da luta pela terra no município de Salto da Divisa, MG, milhares de famílias foram expulsas do campo, muitas delas sob ameaças de morte. Muitas casas foram derrubadas por jagunços e/ou por tratores a mando de fazendeiros coroneis da região. Daniela Rodrigues Oliveira, quilombola da Comunidade Quilombola Braço Forte de Salto da Divisa, MG, nos disse: “Antônia, minha avó, morava em uma fazenda há mais de cinquenta anos e foi expulsa sem direito a nada e ainda com ameaça de morte. Ela não tinha consciência dos direitos dela. Os coronéis davam uma ordem e se obedecia ou era expulso ou morto.” No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político, o sociólogo José de Souza Martins diz: “Para fazer valer o seu poder regional, os coronéis dispunham de grande número de jagunços, trabalhadores e agregados de suas fazendas e das fazendas de seus clientes e correligionários. [...] O coronelismo enredava, numa trama complicada, questões de terra, questões de honra, questões de família e questões políticas” (MARTINS, 1983, p. 48).

Uma profunda convicção de fé no Deus da vida - não em qualquer deus - anima a luta pela terra sob o protagonismo de muitos militantes do MST[2] e a maioria dos camponeses sem-terra que se torna Sem Terra. Isso nos é afirmado em vários depoimentos, nas celebrações e nos gritos de luta. O camponês Ozorino Pires, 71 anos, aposentado, Sem Terra do Acampamento Dom Luciano Mendes, ratifica isso: “Nasci em Jordânia, MG, aqui perto, mas fui criado aqui no município de Salto da Divisa. Os fazendeiros dessa região acabaram com minhas forças. Trabalhei muito para eles, mas eles não conhecem a gente. Gostaram muito do meu suor. Eles só conhecem a gente na hora de política. A Escritura diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Somos filhos da terra e filhos de Deus. Por isso estou aqui junto com os companheiros e com a irmã Geraldinha na luta por um pedacinho de terra para a gente viver em paz até a hora de a gente ir para o cemitério. Estou lutando por essa herança.”

É sempre animador e inspirador o necessário engajamento da juventude nas lutas sociais necessárias. Mais do que nunca é fundamental que um número maior de jovens reconheçam a importância do seu protagonismo nas lutas por direitos, atentos às experiências e à sabedoria dos mais velhos, e com ousadia, conhecimento libertador e fé no Deus da vida, para construir libertação, poder popular! Assim, na luta pela terra, o medo é exorcizado, juventude é imprescindível e mística libertadora potencializa a luta.

Em tempo! O desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira indica que foram mortos em emboscada no Vale do Javari, na Amazônia. Se eles não forem resgatados vivos, entrarão para a História como outros Chico Mendes e Irmã Dorothy, que foram martirizados na Amazônia por estarem defendendo os Povos Indígenas e a Amazônia. Se eles não forem resgatados vivos, jagunços e mandantes precisam ser presos, julgados e condenados com rigor, já! Justiça, Já! Indígenas do Vale do Javari protestam contra Bolsonaro e em defesa de Bruno Pereira, Dom Phillips e Maciel: "Bruno lutou pelo Vale do Javari. Agora o Vale do Javari luta por Bruno, Dom e Maxciel". "Querem acabar com nossos pirarucus e tracajás, e Bruno nos defendia". "Somos guerreiros e vamos continuar lutando para defender nosso território."

Referências

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

14/6/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – MRV é podre de rica, não precisa de 35.000 m2 da Ocupação Pingo D'água, Betim/MG. 2a marcha. Vídeo1

2 - “Prefeito Medioli, olhe para nós! Faça REURBs para nós.” Ocupação Pingo D’água, Betim/MG. Vídeo 2

3 - “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4

4 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3

5 - Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1

6 - Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2

7 - "Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode mais ser prefeito de Betim/MG": Zélia

8 - “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)

9 - Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG, só saímos mortos”

10 - Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para sempre! Cadê a função social?”



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br 

terça-feira, 7 de junho de 2022

“Tratem-nos como um parente de vocês!” Por Frei Gilvander

 “Tratem-nos como um parente de vocês!” Por Frei Gilvander Moreira[1]

Em nome de Jesus, tratem-nos como um parente de vocês! Esse pedido foi feito em forma de clamor por Cristina, 38 anos, mãe de três filhos, nascida nas ruas de Belo Horizonte, MG, uma sobrevivente das ruas que insiste na luta por dignidade e, por isso, não aceita ser despejada pelo Governador de Minas Gerais, Romeu Zema, e pelo Tribunal de Justiça de MG. O pedido para ser tratada como parente foi feito às 9h45 do dia 02 de junho (2022), no início da Reunião da Mesa de Negociação do Governo de Minas Gerais com a Ocupação Vila Fazendinha, no Calafate, em Belo Horizonte, MG.

Mais de vinte famílias que não suportam mais as agruras que é sobreviver nas ruas, ou a pesadíssima cruz do aluguel, ou a humilhação que é sobreviver de favor nas costas de parentes, por saber que têm direito à moradia adequada e que “uma pessoa sem moradia é como uma pássaro que voa, voa, se cansa, mas não tem um ninho para pousar”, ocuparam uma área que estava totalmente abandonada, sem cumprir sua função social: a “Vila Fazendinha”, no centro da capital mineira, no bairro Calafate. Totalmente ocioso, o local era usado para descarte de lixo ou por alguns carroceiros para deixar os cavalos pastarem. O governador Romeu Zema conquistou no Tribunal de Justiça de MG decisão judicial para despejar as famílias (reintegração de posse). Como reintegrar em uma posse se não havia ninguém do Governo antes na posse? Injustamente, os tribunais geralmente só observam se quem reivindica um imóvel tem documentos, mas não verificam se quem está reivindicando ser reintegrado na posse estava na posse ou não.

Para acessar o link da reunião virtual via meet, as famílias da Ocupação Vila Fazendinha foram acolhidas na Ocupação Invisível, que ocupa um casarão abandonado no centro de BH. No início da reunião, a palavra foi passada às famílias da Ocupação. Uma cascata de palavras de fogo, que cortam mais do que navalha, foram ditas para as autoridades que compõem a Mesa de Negociação. Transcrevo abaixo o que disse Cristina Aparecida Siriaco, 38 anos, uma mãe com a voz embargada, muito emocionada, cabeça erguida e olhar fixo de quem queria olhar olho no olho: “Estou aqui para representar não só minha família, mas todo o meu povo. A gente veio de uma história de família muito difícil. Meu pai e minha mãe me conceberam nas ruas de Belo Horizonte. Nasci na rua. Fui criada na rua. Sou uma sobrevivente das ruas. Conheço todo o centro de BH como a palma da minha mão. Nosso lar era a marquise. O primeiro teto que eu vi para nós foi uma caixa de papelão de geladeira. Minha mãe nos deixou dentro daquela caixa de papelão e foi procurar algo para a gente comer. Alguém passou e tocou fogo na caixa com nós dentro. Tive que sair correndo para não morrer queimada. Em nome de Jesus (– Cristina repetiu sete vezes ao longo da sua fala -), eu peço a vocês autoridades para não deixarem acontecer com nossos filhos o que aconteceu comigo e com minha prima. Ponham a mão na consciência, olhem para nós, ponham o coração de vocês em nós e nos tratem como um parente de vocês! Sei que os filhos de vocês, a linhagem de vocês, nunca vão passar pelo que nós passamos, mas eu estou vindo de uma linhagem que se eu não pedir para vocês... Em nome de Jesus, não nos despejem lá da Ocupação Vila Fazendinha, pois se isso acontecer, meu neto será jogado na rua. Nossos pais não tiveram condições de dar um lugar digno para a gente viver. A Praça Raul Soares, aqui no centro de BH, eu conheço como a palma da minha mão, pois era o quintal onde a gente vivia e brincava. Quando nós ocupamos a Vila Fazendinha, lá era tudo abandonado, era local de descarte de lixo, totalmente abandonado pelo Governo de MG que, hoje se diz dono daquele lugar. Eu tenho 38 anos de vida e de luta por dignidade. Agora voltei a estudar, pois tem escola perto da Vila Fazendinha. Eu trabalho como diarista para famílias do bairro Calafate. Na Vila Fazendinha, estamos tendo oportunidade de melhorar nossa vida e construir nossa história, nossos sonhos. Minha mãe morreu por feminicídio, assassinada debaixo do viaduto, onde a gente morava. Eu com nove anos de idade, apaguei o fogo que um rapaz tinha jogado na minha mãe, mas não conseguimos evitar a morte dela. Eu tenho três irmãos em situação de rua, que moram debaixo dos viadutos. Se eu continuar construindo minha casinha ali na Ocupação Vila Fazendinha, eu poderei ajudar meus três irmãos e tirá-los da rua. A gente não quer aluguel social, pois após alguns meses o Governo para de pagar e nos joga na rua novamente. Eu não tenho condições de pagar aluguel, pois perdi meu emprego na pandemia. Se vocês do Governo de MG nos despejarem de lá, para onde iremos e que história eu vou contar para meu neto? Como eu vou ajudar meus irmãos que continuam em situação de rua se formos despejadas? Não somos lixo para sermos despejados. Há 38 anos eu estou lutando por dignidade. Lutamos por um lar para podermos envelhecer com dignidade. Só isso eu peço. Eu não quero que essas crianças passem pelo que eu passei nas ruas de BH. Vivendo ali na Vila Fazendinha, mexendo na horta comunitária eu melhorei a saúde e o meu psicológico que estava todo regaçado quando ali chegamos. Na Ocupação Vila Fazendinha, não tem usuário de droga. Lá as pessoas trabalham, fazem faxina, lá está nossa história e nossos sonhos. Nossas crianças estão nas creches próximas. As igrejas ajudam a gente. Na Ocupação Vila Fazendinha, somos dezesseis famílias, mas uma só grande família. A gente só quer dignidade, que é um direito de todos. Aquele lugar lá só tinha lixo. Agora que estamos cuidando do espaço e dando função social para aquela terra, que estava ociosa, o Governo Zema quer tirar a gente de lá. Isso é muita violência conosco. O mundo é cheio de terra. Por que a gente tem que sofrer tanto? Nós já criamos raízes na Vila Fazendinha. Já conhecemos muita gente ao redor da nossa Ocupação, já fizemos muitas amizades com a vizinhança. Lá, se a gente fizer uma festinha de aniversário, podemos chamar nossos amigos e amigas. Como eu cresci sobrevivendo ‘daqui e dali’, eu não tinha amigos/as. Ali na Ocupação nossas crianças podem brincar, criar raízes e sonhar. Nós amamos aquele local da nossa Ocupação, pois nos traz segurança, paz e vida. É um lugar gostoso de morar. Eu já sofri abuso por morar em lugar descampado, ermo, longe de vizinhança. Nós e nossas crianças precisamos daquele local humilde. Em nome de Jesus, repito e peço a vocês: não nos despejem!”

“Que sabedoria é esta que vem do meu povo?!” Com esta sabedoria, altivez e humanismo revelado por Cristina, feminino de Cristo, uma libertadora e salvadora da humanidade, ela é digna de receber o título de Doutora Honoris causa da Universidade do Povo da Rua. Diante do clamor de Cristina, os representantes do Governo de MG e da prefeitura de BH ofereceram apenas migalhas do CadÚnico e disseram que não têm outra moradia igual ou melhor para oferecer para Cristina com suas dezesseis famílias da Ocupação Vila Fazendinha. Entretanto, o Governador Zema colocou à venda a maioria dos 5 mil terrenos da COHAB[2] no estado de Minas Gerais, que padece um déficit habitacional acima de 700 mil moradias. “A ordem é vender o que for possível, vender do Estado”, “privatizar ao máximo”, repetem os burocratas do governo vassalo das grandes indústrias, do agronegócio e das mineradoras.

Esta injustiça que clama aos céus nos remete à parábola bíblica que o profeta Natã contou ao Rei Davi: Havia um ricaço na cidade que tinha muitos rebanhos e bois e outra pessoa extremamente pobre que tinha apenas uma ovelha, que “era como filha para ele” (2Sam 12,3). A um viajante que chegou em sua casa, o rico não quis oferecer nada do seu imenso rebanho – sua riqueza -, mas furtou a única ovelhinha que o pobre tinha e a sacrificou para oferecer a quem tinha batido na sua porta. O rei Davi, espantado e furioso, disse que esse homem enriquecido merecia a morte. O profeta Natã retrucou: “Esse homem é você mesmo!” (2 Sam 12,7). Isso porque o rei Davi tinha feito injustiças e crimes, entre os quais, mandar assassinar Urias, que em hebraico significa “O Senhor é minha luz” (Cf. 2 Sam 12,-1-12).

A terra aprisionada em latifúndios para o agronegócio e a falta de reforma urbana violentam a dignidade de milhões de pessoas. A prefeitura de Belo Horizonte informou na última semana que existem na capital mineira 17 mil lotes vagos e mais de 80 prédios ou casarões abandonados no centro de BH, dentro do perímetro da Av. do Contorno. Nos bairros nobres, há milhares de casas ou apartamentos luxuosos com poucas pessoas, enquanto nas periferias o povo negro sobrevive apertado, quase amontoado. Eis sinais evidentes de que a escravidão não acabou, pois relações sociais escravocratas se reproduzem cotidianamente. Povo sem-terra e sem-teto, UNI-VOS em lutas coletivas por terra, moradia, pão e liberdade!

07/6/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - MÃE PALAVRAS DE FOGO: "Zema, não nos despeje! Nasci na rua. Minha mãe foi morta nas ruas de BH/MG"

2 - Gov. Zema despejando POBRES no centro de BH/MG. "Não somos lixo!" Ocupação Vila Fazendinha. Vídeo 1

3 - Em vigília de natal, mães clamam p/ não serem despejadas da Ocupação Vila Fazendinha em BH- 23/12/21

4 - Ameaça de despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte, MG. Alto lá! Vídeo 1 – 08/12/21

5 - Crianças e mães CLAMAM para não ser despejadas na Ocupação Vila Fazendinha, Belo Horizonte. Vídeo 2

6 - "O Governo de MG e o TJMG vão despejar a Ocupação Vila Fazendinha em BH e nos jogar na rua?" Vídeo 3

7 - Injusto despejar 30 famílias da Ocupação Vila Fazendinha em BH. Jogá-las na rua? Vídeo 4 - 11/12/21


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Companhia de Habitação do Governo de Minas Gerais.

terça-feira, 31 de maio de 2022

Massacre dos fiscais e Genivaldo: recordar para não repetir. Por Frei Gilvander

 Massacre dos fiscais e Genivaldo: recordar para não repetir. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Após 18,4 anos, em quatro dias de 2º julgamento, em Belo Horizonte, MG, dia 27 de maio último (2022), na 1ª instância da Justiça Federal, o empresário Antério Mânica, “rei do feijão”, ex-prefeito de Unaí pelo PSDB, no noroeste de Minas Gerais, foi condenado a 64 anos de prisão por ter sido um dos mandantes do “Massacre dos Fiscais”, em Unaí, dia 28 de janeiro de 2004, que se tornou, pela Lei 12.064, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. O 1º julgamento de Antério Mânica, em 2015, que o condenou a 100 anos de prisão, foi anulado pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região em 2018. Nada a comemorar, pois Antério Mânica seguirá livre como os outros mandantes Norberto Mânica, Hugo Pimenta e José Alberto, que, mesmo condenados há cerca de 100 anos, seguem livres gozando o direito de ir e vir para onde quiserem. E pior, Minas Gerais segue sendo o estado campeão em trabalho escravo contemporâneo.

Recordar as opressões e violências do passado que continuam presentes, se reproduzindo, e as lutas de resistência popular é imprescindível para seguirmos com as lutas libertárias. “Recordar para não repetir”, alertava a filósofa Hannah Arendt ao analisar o totalitarismo político nazista. Era dia 28 de janeiro de 2004, 8h20 da manhã, em uma emboscada, cinco jagunços dispararam rajadas de tiros em quatro fiscais da Delegacia Regional do Ministério do Trabalho, perto da Fazenda Bocaina, no município de Unaí. Na maior chacina contra agentes do Estado Brasileiro, foram ceifadas as vidas dos fiscais Erastótenes de Almeida Gonçalves (o Tote), de 42 anos, João Batista Soares Lage, 50, e Nelson José da Silva, 52, e do motorista Aílton Pereira de Oliveira, 52. Por quê? Porque como servidores éticos e idôneos, estavam cumprindo seu dever: fiscalizando a existência de trabalho escravo em fazendas do agronegócio no município de Unaí. As autuações de vários fazendeiros escravocratas incomodavam, porque revelavam que “reis do feijão” eram na verdade “reis do trabalho escravo”.

Assisti presencialmente a algumas manhãs e tardes do 1º e 2º julgamento do Antério Mânica e também dos julgamentos dos outros mandantes. Ouvi coisas estarrecedoras que aconteceram na trama capitalista - satânica e diabólica - para assassinar trabalhadores éticos que cumpriam sua missão como servidores públicos. Ouvi, por exemplo, durante o 2º julgamento do Antério Mânica: “Havia um homem bravo dentro de um marea azul escuro, “o patrão”, que mandou matar todo mundo: «Tora todo mundo, todos!»”. Esta ordem alterou o acordo inicial à moda de Caim, que era para matar só o fiscal Nelson José da Silva. Os jagunços Chico Pinheiro e Erinaldo, e Hugo Pimenta em delação premiada, disseram que quem estava no Marea azul escuro era Antério Mânica, que disse: "Tora todo mundo".

Após perseguir por vários dias no encalço dos fiscais sempre juntos, preferiram não mais esperar um momento para emboscar só o fiscal Nelson. O empresário dono de cerealista, Hugo Pimenta, não tinha fazenda de soja e nem de feijão, era um grande comerciante de feijão em Unaí. Logo parecia não ter interesse direto no assassinato dos fiscais. Os patrões que se sentiam incomodados pelas fiscalizações eram Antério Mânica e Norberto Manica. Os jagunços simularam praticar um latrocínio, assalto seguido de morte. Por isso, pegaram os celulares dos fiscais, jogaram em córregos e o relógio de Erastótenes foi encontrado em uma privada na casa de um dos jagunços em Formosa, GO. Não levaram a caminhonete branca com placa do governo federal. Esse tipo de caminhonete dificilmente é roubado. Provocado, o jagunço Erinaldo pediu 300 mil reais para assumir o massacre como latrocínio, mas desistiu, pois tinha muita gente envolvida e seria impossível demonstrar que tinha sido latrocínio e não massacre a mando. Antério Mânica e Norberto Mânica pressionaram os jagunços na prisão para eles assumirem que era latrocínio, o que livraria os mandantes. Esposa de um dos jagunços foi na prefeitura de Unaí pedir dinheiro para Antério Mânica.

Após o massacre, os jagunços voltaram para cidade de Formosa, em Goiás, distante cerca de 110 Km de Unaí, passando antes por Brasília, onde jogaram o carro roubado usado, no lago Paranoá. José Alberto e Chico Pinheiro executaram ordens de Antério Mânica e Norberto Mânica. Automóvel de luxo na época, o Marea, de propriedade de Bernadete Mânica, esposa de Antero, ficou escondido após o massacre, coberto por uma capa durante muito tempo na garagem de sua casa para ser ocultado. Declaração do DETRAN/MG comprovou que em Unaí na época do massacre só existia um marea azul escuro.

Márcia Mânica, filha de Antério, sofreu autuação dos fiscais do Ministério do Trabalho dia 17 de janeiro de 2004. A quebra de sigilo telefônico e depoimentos dos jagunços comprovaram que Antério Mânica telefonou para a cidade de Formosa para o agenciador dos jagunços várias vezes em janeiro de 2004, antes do massacre. Poucos minutos após o massacre, Antério Mânica telefonou para a Delegacia Regional do Trabalho na cidade de Paracatu, onde era o escritório dos fiscais, perguntando se já sabiam do massacre dos fiscais.

Os jagunços procuraram em Unaí um hotel que não tivesse câmera. O chefe dos jagunços, Chico Pinheiro, dormiu em outro hotel. Os jagunços foram em Unaí e Paracatu várias vezes para matar os fiscais, mas não acharam ocasião e lugar propício. “Andando pra cima e pra baixo”, “pressionamos para matar logo, pois não podíamos continuar andando armado em carro roubado”, disse o jagunço Erinaldo no 2º julgamento de Antério. Por isso, a ordem: "Mata todo mundo". Os jagunços procuraram vários dias para matar o Nelson, mas não o encontraram sozinho. O José Alberto, um dos mandantes, levou os jagunços até a porta da casa do Nelson, em Unaí, mas por causa de cerca elétrica e porque “jagunço respeita a casa e a família” – disse Erinaldo -, resolveram não matá-lo na casa dele.

O Norberto Mânica procurou Erinaldo para matar outras pessoas no Paraná. "É mais fácil eu matar você, Norberto, do que matar outras pessoas novamente a seu mando", disse Erinaldo. Por fazer delação premiada, Erinaldo teve um abatimento de 30% da pena que ficou em 72 anos. Após cumprir 16 anos de prisão em regime fechado, ele já está em regime aberto.

Em Unaí, alguém (o nome foi dito durante o 2º julgamento. Não escrevo o nome aqui na esperança de que todos que pensam assim se convertam) disse: "Foram mortos quatro cachorros, não quatro fiscais". As viúvas, os familiares dos fiscais e todos que combatem o trabalho escravo no Brasil tiveram que ouvir esta violenta e criminosa afirmação. Quem vomita violência assim precisa ser alcançado pela justiça divina! Convertam antes que seja tarde!

A Polícia Federal e a Polícia Civil de MG fizeram varredura em todos os hotéis de Unaí para descobrir onde os jagunços tinham hospedado. Puseram nomes falsos na portaria do hotel onde dormiram já decididos a assassinar os fiscais na manhã seguinte, mas um número de RG verdadeiro foi escrito no caderno, por vacilo. Nunca os crimes são totalmente invisíveis. Os policiais durante a investigação vasculharam também números de celulares usados na região de Unaí.

Após identificar os pistoleiros, eles passaram a ser monitorados até quando julgaram oportuno prendê-los. Após a prisão, os pistoleiros passaram a colaborar com a investigação que comprovou a existência de dois intermediários – José Alberto e Hugo Pimenta - e dois mandantes: Antério Mânica e Norberto Mânica. Mataram os fiscais sem quebrar os vídeos das portas da camionete ranja com placa branca, carro oficial. Com isso, se descartou ser latrocínio. Não iriam fazer um assalto com quatro pessoas em uma camionete do Governo Federal e não levá-la. Os jagunços Erinaldo, Wiliam, Rogério Alan e Chico Pinheiro foram presos no mesmo dia em Formosa, Goiás, e levados de helicóptero para a Polícia Federal em Brasília.

Parabéns a todas as pessoas e organizações, como a Comissão Pastoral da Terra, que seguem firmes na luta pela erradicação do trabalho escravo no Brasil. Basta de relações sociais escravocratas! Respeito à dignidade humana é princípio constitucional e precisa ser respeitado.

Em tempo: Nos Estados Unidos, George Floyd foi morto asfixiado dois anos atrás. No Brasil, dia 25 de maio de 2022, vários policiais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) fizeram uma Sexta-feira da Paixão, em câmara de gás no camburão de uma viatura, em Umbaúba, SE, ao torturar e matar Genivaldo de Jesus, negro, esposo e pai, outro Jesus. Em prantos, a esposa dele desabafou: “Ele nunca fez mal a ninguém”.



Quem elogiou o massacre que a Polícia Militar do RJ e PRF fizeram na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, dia 24/5/2022, causando 25 mortos, elogiou política de segurança satânica e diabólica: a do bangue-bangue. Além da mãe morta, todos os mortos nasceram inocentes, mas a sociedade capitalista desumaniza muitas pessoas. Segurança pública se conquista com justiça socioambiental, cultura, educação pública de qualidade, direitos humanos e relações sociais de justiça, solidariedade, amor e paz.

Presente em nós e nas vítimas de violência, o Deus da vida continua interpelando os jagunços e mandantes que massacraram os fiscais, os policiais do RJ e da PRF, Cains de hoje: “Onde estão os irmãos de vocês, os fiscais Nelson, Erastótenes, João Batista e Ailton, a mãe, os negros de periferia, o Genivaldo? Ouço o sangue deles clamando por mim de Unaí, dos morros do RJ e da câmara de gás da viatura” (Gn 4,9-10). Justiça, JÁ!

31/5/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Helba, viúva do fiscal Nelson: "São muitas provas que condenaram Antério Mânica. 4 mandantes livres"

2 - Viúvas de Unaí e auditoras fiscais: trabalho escravo, não! Prisão dos mandantes, sim! RJ, 23/02/16

3 - Marinês, viúva do fiscal Erastótenes, fala sobre o Massacre dos Fiscais em Unaí. 04/09/2013

4 - Chacina dos fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva do Ailton, Marlene e filha Rayanne. 18/01/2013

5 - Entrevista com Helba, viúva de Nelson, 1 dos 4 fiscais matados em Unaí em 28/01/2004 - 07/01/2012

6 - Entrevista com Calazans sobre o Massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - 2a parte - 12/01/2012

7 - 8 anos do massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - Entrevista com Calazans - 1a parte - 12/01/2012


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 24 de maio de 2022

Ministério Público? Cultura ou barbárie? Por Frei Gilvander

 Ministério Público? Cultura ou barbárie? Por Frei Gilvander Moreira[1]



A ação de reintegração de posse movida contra famílias vulneráveis da Ocupação Marielle Franco pelo prefeito de Montes Claros/MG, Humberto Souto, de um partido alinhado à extrema direita, teve a decisão de despejo concebida pelo juiz da 2ª Vara Pública Municipal de Montes Claros. O Ministério Público de Minas Gerais, com atuação em Montes Claros, deu Parecer favorável ao município para despejar 128 famílias em extrema pobreza. Vinte anos atrás, o então prefeito doou a área para moradia com escritura de doação registrada no 2º Oficio de Notas de Montes Claros. Logo, decisão injusta do prefeito Humberto Souto, do juiz da 2ª Vara e do Ministério Público de MG, pois pisam nos direitos humanos das famílias, a começar do direito de morar dignamente. Eis um exemplo de uma lista sem fim do Estado violando direitos sociais. Sinto nojo ver promotor do Ministério Público – ou juiz, ou advogado ou quem está cegado pela ideologia dominante -, que se diz promotor de justiça, se referir ao povo das Ocupações como “invasores”; um povo empobrecido, que cansado da pesadíssima cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor nas cosas de parentes ou nas ruas, por falta de reformas agrária e urbana, pela hegemonia do latifúndio e da especulação imobiliária nas cidades, não tem outra opção senão ocupar terrenos e prédios abandonados, propriedades inconstitucionais, porque não cumprem sua função social. A quem se refere às milhares de famílias das Ocupações camponesas e urbanas do Brasil como “invasores”, dedico uma das decisões mais citadas para demonstrar a legitimidade das ocupações: a do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Habeas Corpus 5574/SP, quando afirmou que “os sem terra, ao procederem a ocupação, não praticaram um esbulho possessório, já que eles investiam contra a propriedade alheia não dolosamente para a prática de usurpação, mas sim dominados pelo interesse de provocar a implementação da reforma agrária”. O Ministro Cernicchiaro afirma que "movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático"[2]. Ocupação “não pode ser confundida, identificada como esbulho possessório, ou a alteração de limites. [...] Não se volta para usurpar a propriedade alheia” (CERNICCHIARO, 1997, p. 8).[3] A finalidade das Ocupações é outra. Ajusta-se ao ordenamento jurídico, sendo “expressão do direito de cidadania”.[4] Quando veremos Promotores/as do Ministério Público, que se dizem de Justiça, defender sem vacilação o público, o republicano e não propriedade privada capitalista?

Temos que aprender muito com Walter Benjamin, pensador crítico que sofreu as agruras do nazismo. Encurralado pela polícia miliciana de Hitler, Benjamin preferiu suicidar-se do que ser jogado em um campo de concentração nazista. O pensamento de Walter Benjamin nos inspira e nos encoraja a dizer que os “bens culturais da civilização” estão calcados sobre relações sociais escravocratas e violentas sob a aparência de cultura e de civilização. As pirâmides do Egito escondem a brutal escravidão do imperialismo egípcio que as fizeram. Todo luxo da elite dominante se constrói gerando muito lixo, violência e sangue no meio da classe trabalhadora e causando devastação ambiental. Nas entrelinhas, todo monumento de cultura é um monumento de barbárie também. Quantos operários estão sepultados na barragem e hidrelétrica de Itaipu, na Ponte Rio-Niterói, na construção de Brasília, na barragem e hidrelétrica de Belo Monte, na Transposição do Rio São Francisco? Quantas vidas estão sendo ceifadas pelo agronegócio ao causar epidemia de câncer, desertificação dos territórios, asfixia da reforma agrária e da agricultura familiar, êxodo rural, dependência econômica? Debaixo do tapete da história oficial, sempre há muita sujeira e violência histórica. Para defendermos a justiça temos necessariamente que falar e denunciar as injustiças. O passado está vivo e interpela o presente.

 “Nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer[5], alertava Walter Benjamin. Não basta criar cultura dos direitos humanos, precisamos criar e construir condições materiais objetivas que viabilizem relações sociais que garantam a efetivação dos Direitos Humanos. Quase 90% da população brasileira está endividada. Uma pessoa endividada é uma pessoa violentada, aprisionada e escravizada. O capitalismo é uma espécie de religião sem perdão e sem piedade.

Novos modos de dominação estão acontecendo a partir da uberização das relações de trabalho, dos algoritmos da internet e da financeirização do capitalismo atual. Walter Benjamim afirmou: “a experiência de nossa geração: o capitalismo não morrerá de morte natural” (BENJAMIN, 2006, p. 708). Portanto, não podemos ficar esperando “melhorar a correção de forças”, como se isso fosse possível se alterar automaticamente. Urge lutarmos aguerridamente de forma coletiva por direitos socioambientais para construirmos uma correlação de forças menos adversa e marcharmos para a superação do sistema do capital, que é uma máquina de moer vidas.

Na sociedade capitalista que marcha para a barbárie cotidianamente, revolucionário é puxar o freio da história, é avisar sobre o incêndio que é iminente. Cabe recordar a função dupla do poder como violência na instituição do Direito, conforme nos ensina Walter Benjamin. “A função do poder como violência na instituição do Direito é dupla, na medida em que essa instituição se propõe ser aquilo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violência como meio; mas, por outro lado, no momento da aplicação dos fins em vista como Direito, a violência não abdica, mas transforma-se, num sentido rigoroso e imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como Direito, em nome do poder político, não um fim livre e independente da violência, mas um fim necessária e intimamente a ela ligado” (BENJAMIN, 2012, p. 77).

Enfim, urge levarmos a sério a profecia bíblica do destemido profeta Miquéias: Ai daqueles que planejam iniquidade e tramam o mal em seus leitos! [...] Se cobiçam campos, eles os roubam, se casas, eles as tomam; oprimem o varão e sua casa, o homem e sua herança” (Mq 2,1-2). 

Em tempo: Após 18,4 anos do massacre de quatro fiscais do Ministério do Trabalho em Unaí, no noroeste de Minas Gerais, dia 24 de maio de 2022, iniciou o 2º julgamento de Antero Mânica, indiciado como um dos mandantes do massacre e condenado a 100 anos de prisão no primeiro julgamento em 2015, que foi anulado pelo pela 4ª Turma do Tribunal Federal da 1ª Região, em 2018. Basta de impunidade de mandantes de massacres, o que fomenta outros massacres![6] Justiça antes tarde do que nunca![7]

Referências

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

______. Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bolle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Viúvas de Unaí e auditoras fiscais: trabalho escravo, não! Prisão dos mandantes, sim! RJ, 23/02/16

2 - Marinês, viúva do fiscal Erastótenes, fala sobre o Massacre dos Fiscais em Unaí. 04/09/2013

3 - Chacina dos fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva do Ailton, Marlene e filha Rayanne. 18/01/2013

4 - Entrevista com Helba, viúva de Nelson, 1 dos 4 fiscais matados em Unaí em 28/01/2004 - 07/01/2012

5 - Entrevista com Calazans sobre o Massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - 2a parte - 12/01/2012

6 - 8 anos do massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - Entrevista com Calazans - 1a parte - 12/01/2012



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2]Cf. voto do ministro Cernicchiaro na decisão da 6ª Turma do STJ, dia 8 de abril de 1997, no Habeas Corpus nº 5574/SP 970010236-0.

[4] Outras decisões no mesmo sentido foram estudadas por Delze dos Santos LAUREANO no Livro “O MST e a Constituição – um sujeito histórico na luta pela Reforma Agrária no Brasil”. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

[5] BENJAMIN, 2012, p. 12.

[7] Para não esquecermos, sugerimos a leitura: http://gilvander.org.br/site/chacina-dos-fiscais-em-unai-nove-anos-depois-justica-a-vista/