sábado, 7 de maio de 2016

É golpe, sim, porque não houve crime de responsabilidade, demonstram juristas. 06/05/2016.

É golpe, sim, porque não houve crime de responsabilidade, demonstram juristas.
Breve Nota Crítica ao Relatório Anastasia: contra a admissibilidade do processo de impeachment por crime de responsabilidade da Presidente da República – Por Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia. – 06/05/2016
A citação feita no Relatório Anastasia[1] do texto dos comentários ao art. 85 da Constituição da República que escrevemos[2] não considera de modo adequado a integridade do texto, nem do trecho referido. Para nós, o fato do rol do art. 85 ser exemplificativo reforça ainda mais a exigência prevista no parágrafo único do mesmo artigo da Constituição de que a lei especial e regulamentar tipifique e defina os crimes de forma completa, afastando, portanto, “tipos abertos”, bem como a interpretação extensiva ou por analogia – o que não é possível por se tratar de crime. Indicamos, portanto, a leitura do trecho dos Comentários à Constituição do Brasil:
“Para os crimes de responsabilidade valem os dispositivos constitucionais e sua regulamentação através da Lei 1.079/50.” E, logo em seguida, “O rol previsto no art. 85 é meramente exemplificativo, constando sua definição completa naquela citada norma infraconstitucional”, ou seja, a Lei 1.079/50. Este é o último parágrafo do texto dos comentários ao artigo 85, in Comentários à Constituição do Brasil, p. 1287. Depois de ter explicado, portanto, que a Lei 1.079/50 tipifica os crimes.
O Senador Anastasia, assim, nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos, pois o fato de o elenco do art. 85 ser exemplificativo não significa que esteja afastada a exigência de previsão legal taxativa dos crimes de responsabilidade, conforme o parágrafo do mesmo artigo.
Como na Carta aberta a Anastasia que foi encaminhada por professores, estudantes e servidores da Faculdade de Direito da UFMG:
2) A CR/88 dispõe em seu art. 85, parágrafo único, que uma lei especial definirá os crimes de responsabilidade e estabelecerá as normas de processo e julgamento do impeachment. Esta lei, como já afirmado pelo STF no julgamento do caso Collor em sucessivos mandados de segurança (MS 21.564, MS 21.623 e MS 21.68) e agora na ADPF 378 é a Lei 1079/50. Entendemos que em consonância com o devido processo constitucional as hipóteses de crime elencadas pela lei do impeachment devem ser atendidas taxativamente, não cabendo, portanto, interpretações extensivas ou analógicas em respeito às garantias do próprio sistema presidencialista, e do ordenamento jurídico como um todo, em que restrições de direitos devem ser interpretadas de forma taxativa.”[3]
Para a Constituição da República, justamente porque o rol é exemplificativo que a lei especial regulamentará tipificando os crimes, por uma questão de segurança jurídica! Ou seja, cabe à lei especial definir por completo. Como diria Gomes Canotilho, estamos diante de uma vinculação expressa do legislador à Constituição. Sabemos, pois, quais são os crimes de responsabilidade e qual o procedimento de impeachment porque a Constituição estabeleceu os parâmetros no art. 85, incisos e parágrafo, e no art. 86 (também art. 51, I, e art. 52, I), e a Lei 1.079/50 os regulamentou, prevendo, taxativamente e definindo de forma completa, os tipos penais.
Não cabe assim interpretação extensiva e analógica dos crimes completamente definidos pela lei especial prevista no parágrafo do art. 85. O preceito fundamental em questão é mesmo o princípio da reserva legal. Somos, pois, daqueles que concordam com Marcelo Neves[4] e Alexandre Morais da Rosa[5] no sentido de que crime de responsabilidade é crime e se submete à reserva legal, em lei específica, no caso, a lei 1.079/50, no que foi recepcionada[6]. O fato de o rol do art. 85 não ser numerus clausus não afasta, muito antes pelo contrário, a exigência constitucional, prevista no parágrafo único do art. 85, de que a lei especial taxativamente o faça. Ou, como dissemos no texto dos Comentários, defina completamente os crimes. Questão mesmo de segurança jurídica, não há como se falar em “tipos abertos”. Ou seja, o Senador Anastasia termina por tirar conclusões com as que jamais concordaremos.
A estratégia do Relatório Anastasia é a de se admitir que não há a tipificação taxativa dos crimes de responsabilidade, mas que isso “não é um problema”, pois que “o tipo seria aberto” e, então, poder-se-ia a ele aderir legislações e capitulações que lhe são estranhas, como a responsabilidade fiscal ou qualquer outra. Ora, se há previsão de hipóteses de “crime de responsabilidade” e “crime comum” de Presidente da República, a serem apreciados em processos diferentes, é justamente porque há crimes, ainda que diferentes.
Cabe lembrar, ademais, que, embora estejamos numa República democrática em que, com certeza, o Presidente é responsável, o sistema de governo constitucionalmente adotado é o presidencialismo e não o parlamentarismo. Logo, no Brasil, o Presidente da República só pode ser impedido quando estiver configurado crime, segundo a Constituição e nos estritos termos da legislação a que a própria Constituição se refere.
Nesse sentido, cabe dizer que é perceptível desde o início qual seria a estratégia do relatório. A estratégia de pretender descaracterizar o caráter de crime do crime de responsabilidade para defender a possibilidade de afastar a exigência jurídica de taxatividade dos crimes previstos em lei especial, abrindo espaço para a interpretação extensiva e por analogia, defender uma responsabilidade objetiva, sem dolo, e por atos que a Presidente não cometeu, como bem mostrou Alexandre Morais da Rosa[7], mesmo no caso das chamadas “pedaladas fiscais” (sic) referentes ao Plano Safra, fato atípico posto que não há de se confundir o atraso no repasse dos valores referentes a subvenções sociais com operações de crédito e onde sequer há atos cometidos pela Presidente da República, como bem mostrou, mais uma vez, Ricardo Lodi[8].
O que se faz, ao fim e ao cabo, revela, justamente o que nós, e os demais autores aqui citados, temos dito desde o início: trata-se de uma flagrante inconstitucionalidade que sacrifica o caráter jurídico-político, portanto, constitucional, do instituto do impeachment para reduzi-lo apenas à vontade de uma maioria tardiamente formada.

Notas e Referências:
[1] Ver Relatório, p. 53. Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/05/04/veja-aqui-a-integra-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia. “No mesmo sentido, encontramos fartos ensinamentos na doutrina, podendo ser citados, como exemplos, as posições de Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia (in: Leo Ferreira Leoncy et al., Comentários à Constituição do Brasil, p. 1287); Bernardo Gonçalves Fernandes (Curso de Direito Constitucional, p. 900), Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional, p. 956) e Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, p. 1263). Como se vê, a doutrina praticamente unânime reafirma que a lista de bens jurídicos protegida pelos tipos do art. 85 da CF é meramente exemplificativa. Nada há de ilícito, portanto, na especificação de um novo tipo pelo legislador ordinário, como ocorreu com o art. 11. Aliás, esse argumento levaria a conclusões absurdas: o legislador, a quem cabe exclusivamente tipificar os crimes, pois se trata de hipótese de reserva legal, não teria o poder de tipificar nenhuma conduta, a não ser as expressamente previstas na Constituição?”
[2] STRECK, Lenio Luiz; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; BAHIA, Alexandre. Comentário ao artigo 85 In: CANOTILHO, JJ Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1285 a 1287.
[4] Parecer disponível em https://cloudup.com/ig-cUkufb7N
[6] Sobre o tema, afirma Lenio Streck: “As regras de interpretação – sobre as quais não existe uma taxonomia – apontam para algumas questões básicas: quando se trata de Direito Penal, não pode haver analogia in malam partem. E quando está em jogo a coisa mais sagrada da democracia – que é a vontade do povo — também não se podem fazer pan-hermeneutismos, a partir de analogias e/ou interpretações extensivas. Parece-me que qualquer interpretação sempre deverá ser indubio pro populo. In dubio pro vontade popular.” (Disponível em  http://www.conjur.com.br/2015-ago-24/lenio-streck-constituicao-impeachment-mandato-anterior). Ver também os diversos artigos publicados emhttp://emporiododireito.com.br/category/constituicao-e-democracia/ sobre o tema do impeachment,especialmente, o artigo “Golpe Vergonhoso passa na Câmara”, disponível emhttp://emporiododireito.com.br/golpe-vergonhoso-passa/, bem como a obra BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Impeachment e o Supremo Tribunal Federal: História e Teoria Constitucional Brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[7] Ver o artigo disponível em http://emporiododireito.com.br/o-erro-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia-pode-anular-o-impeachment-por-alexandre-morais-da-rosa/.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Formatura de cotistas no CEFET/RJ: uma experiência de humanização. Que beleza de educação emancipatória.

Formatura de cotistas no CEFET/RJ: uma experiência de humanização. Que beleza de educação emancipatória.

Assim relata uma professora:
“Há quatro anos, tivemos no CEFET/RJ  nossos primeiros alunos cotistas. Para entrar lá, os jovens fazem uma prova de seleção. Naquele ano, 50% das vagas foram destinadas para alunos negros, de escolas públicas e com renda baixa.
Lembro-me que levei um susto ao entrar em sala. Havia negros e alunos extremamente diferentes na forma de se expressar. Eu simplesmente não sabia como lidar. Pensei em escrever uma carta para Dilma reclamando. Se esse governo quer colocar cotistas em sala, que ao menos nos dê uma certa infra-estrutura para recebê-los! Psicólogos, pedagogos, assistentes sociais... cadê esse time para nos ajudar? Nada? Como assim?
Da mesma forma que sempre fazia com a minha turma, eu mandava o meu aluno estudar. Dizia que se ele não fizesse a parte dele, não passaria porque bababá bububú... muitos alunos cotistas não mexiam o dedo mesmo eu repetindo o discurso: você tem que estudar! Você tem que estudar!!!
Percebi que muitos não sabiam o que era "estudar" porque, meodeos, nunca haviam estudado. Era como eu virar para qualquer outro na rua que nunca, por exemplo, estudou música e falar: você tem que treinar piano! Você tem que treinar piano! O cara ia sentar em frente ao piano e fazer o quê? Não saberia nem por onde começar! Quando percebi isso entrei em desespero porque o problema era muito maior do que pensava...
O que fazer? Desistir? Deixar que todos repetissem? Mas seriam muitos! O desespero une os seres humanos que estão sob o mesmo inferno. Nós, professores, fomos conversando e juntamente com parte da equipe pedagógica, criando subsídios para esses alunos.

A ficha caiu quando um menino de boné e cordão prata veio até mim e falou: "Professora, você fala que eu tenho que estudar. O que seria exatamente isso? Eu não quero perder essa oportunidade.  Me ajuda..."
Esse menino mal sabia pegar no lápis por falta de hábito...
Tivemos que lidar também com tensões e preconceitos que existiam entre eles. Por exemplo, alguns alunos que vieram de escolas particulares com família bem estruturada não entendiam por quê o colega não fazia o trabalho direito. Inicialmente, houve, em algumas turmas, segregação. No jogo de xadrez, por exemplo, onde temos peças pretas e brancas, eles perguntavam quem seria os cotistas e os não-cotistas...
Sei que criamos aulas de atendimento... preparamos nossos monitores para atender a esse novo perfil de aluno. Ensinei a aluno segurar no lápis e organizar o raciocínio para aprender física e fazer problemas de IME e ITA como fazia em todos os outros anos e dá-lhe conversas com todos os demais privilegiados para entender que não é excluindo que incluímos ninguém. Não é fazendo o mal que faremos um bem...
O que nenhum professor do CEFET admitia era baixar o nível de nossa instituição. Eles, os alunos cotistas, teriam que alcançar os demais. Foi preciso muita dedicação, hora extra, mais avaliações para o aluno ter oportunidade de recuperar a nota - dentre outras coisas maiores como, por exemplo, amor ao próximo e empatia à causa - para que o equilíbrio, enfim, fosse alcançado.
Foi preciso muito mais trabalho...
Fizemos um forte levantamento sobre o rendimento desses alunos. Quanta emoção ver as notas deles no segundo semestre se igualando aos demais colegas que tiveram muito mais oportunidades e condições para estudar. Quanta emoção... conseguimos, gente, conseguimos... estamos conseguindo...
Percebi claramente que falta de base nada tem a ver com capacidade intelectual e me surpreendi muito quando vi minha cara se esfarelando e a poesia sambando na cara do meu preconceito ou melhor, do meu desespero - no sentido, aqui, de negar a esperança.
Este ano (como em outros nas minhas turmas do primeiro ano), minha primeira avaliação foi coletiva e não individual.  Os alunos tinham que fazer um grupo, estudar entre eles e, no dia da prova, eu faria uma pergunta em que somente um deles, sorteado por mim na hora, resolveria no quadro a questão por mim colocada. A nota do aluno escolhido seria a nota de todos os demais componentes daquele grupo. Essa foi uma forma que encontrei de forçar os alunos privilegiados a me ajudarem a ajudar os menos privilegiados.
Para um jovem de 15 anos, isso beirou o absurdo das injustiças. Uma aluna veio falar comigo: "professora, eu vou ter que convencer o outro a estudar como? Eu tô chamando e ele, quando vem, nada fala!"
Com muito amor e já mais experiente e segura, expliquei a ela que estávamos lidando com uma pessoa que vinha de uma realidade completamente diferente e que a forma de incluí-la não seria fazendo um chamado comum porque esse ser já tinha sofrido na pele o diabo da exclusão social e se sentia amedrontado perante os demais. "Você vai ser o diferencial na vida dele. Dependendo da forma em que se chegue a ele, você pode despertar um artista, um sábio, um colega pensante ou minar qualquer coisa boa que possa emergir." A menina de 15 anos me olhou assustada. Nunca talvez ninguém havia lhe dado tanta responsabilidade. Continuei: "Sim. Temos que, acima de tudo, cuidar uns dos outros sempre. Isso se aprende também na escola."
A prova foi ontem. Sem querer, escolhi o aluno com maior dificuldade. Ele foi ao quadro e falou com certa timidez natural, mas com uma segurança que eu mesma não esperava.
Ao final da aula, a aluna veio emocionada falar comigo: "Professora, fiz o que a senhora falou. Chamei o menino de outra forma e com jeitinho fui tirando dele o que ele sabia e mostrando a ele como agir. Estudamos a tarde toda. Você viu como ele falou bem?". Havia o orgulho e a felicidade em ter ajudado o próximo e incluir um que, em outra época, seria completamente jogado às margens da nossa sociedade sendo o que chamamos de "marginal" em sua essência.
Escrevo isso sob uma emoção ainda muito forte. Quando vejo a primeira turma de cotistas se formando com louvor sem nada mais ter do que se envergonhar em termos de conhecimento em relação aos seus colegas, eu devo agradecer por essa oportunidade que esse governo me deu de fazer com que eu fosse uma verdadeira educadora. Devo agradecer pela oportunidade de me fazer unir e dialogar com os colegas e crescermos todos como um verdadeiro centro de ensino. Devo agradecer por ter me feito um ser humano infinitamente mais sensível e melhor.

Reclama da política das cotas quem nunca sentiu na pele e testemunhou o desabrochar da dignidade de um cidadão...” RJ, 01/05/2016.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Deus e Jesus são ecumênicos, a vida também. E nós? - Por frei Gilvander Moreira

Deus e Jesus são ecumênicos, a vida também. E nós?
Por Gilvander Luís Moreira[1]

Nas ocupações de terra – no campo e na cidade - o povo traz junto a sua fé de muitos nomes. Os sem-terra e os sem-casa têm fome de terra e fome de Deus. A fé no Deus da vida é vivenciada de muitas formas. Na luta por terra, moradia, água, liberdade, trabalho digno, direitos - vida e dignidade - as diferenças entre igrejas, crenças e rituais não se tornam obstáculos para uma profunda afirmação de igualdade e partilha. “Quando nós aqui chegamos, nosso Deus, na ocupação, já passeava no nosso meio”, canta o povo das Ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, MG. O ecumenismo (casa em comum) é vivido espontaneamente no dia a dia do povo que luta de forma coletiva por direitos sociais. A Bíblia conversa diariamente com mulheres e homens que trazem sabedorias ancestrais misturadas às histórias de dor e de violência. E o povo resiste. O Deus dos povos da Bíblia é um Deus ecumênico, pois é o Deus de Abraão, dos hapirus, dos seminômades, dos egípcios oprimidos, dos cananeus explorados, dos quenitas, dos gentios etc.
É este ecumenismo concreto a partir do chão da vida dos injustiçados que anima a caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Leitura Popular Militante e transformadora da vida e de muitas pastorais sociais como a CPT, o CIMI, a Pastoral dos Migrantes, a Pastoral da Criança, a Pastoral dos Pescadores, a Pastoral Carcerária e tantas outras.
Buscando participação conjunta de católicos e luteranos, o Papa Francisco anunciou os preparativos para a celebração dos 500 anos da Reforma Protestante: 1516 a 2016. O tema comum será: "Alegria partilhada pelo Evangelho, confissão dos pecados cometidos contra a unidade e testemunho comum para o mundo de hoje". Aqui, três elementos são importantes na leitura crítica e celebrativa da história dos últimos 500 anos da vida das igrejas: a alegria da partilha; a confissão dos pecados e o testemunho comum.
1-   Na caminhada ecumênica da igreja dos pobres na América Afrolatíndia, a alegria é um componente fundamental! Irmanados na opção pelos pobres, saímos de nossas burocracias institucionais para a radical fidelidade com a luta dos pobres pelos seus direitos e nos encontramos com irmãs e irmãos de outras igrejas e de outros modos de fé que caminham conosco e nos ajudam na vivência da experiência. Estes encontros são marcados por espiritualidade libertadora ecumênica e por amizade como poder político e são fonte de alegria evangélica: não estamos sozinhos/as! Entre nós não deve haver superiores e inferiores, nem quem mande e quem obedeça, mas todos, na amizade, devem lutar lado a lado conspirando a construção de uma sociedade justa e solidária. O Deus ecumênico caminha conosco e nos faz família plural, de muitos modos. Nestes 500 anos o que a rigidez das instituições dividiu e discriminou, o Evangelho da justiça a partir da misericórdia juntou em um caminho ecumênico fraterno de cumplicidade e confiança. Para haver unidade é necessário haver pluralidade. Uniformidade é pensamento único, é dogmatismo que sufoca.
2-   A confissão/reconhecimento de pecados/injustiças é parte vital do processo de crítica e autocrítica de toda a pastoral popular e da igreja dos pobres. Em todos os segundos da nossa vida, precisamos reconhecer em nós mesmos os erros e as fraquezas que nos distanciam da radicalidade do evangelho de Jesus de Nazaré, presença viva do Deus ecumênico no nosso meio. Nenhuma defesa institucional pode justificar a história de violência e intolerância que marcou a relação entre católicos e protestantes. Aliás, foram os católicos que apelidaram os evangélicos de protestantes. Jesus também foi protestante diante de muitas injustiças. Protestou contra Herodes, contra os saduceus, contra os hipócritas. Devemos pedir perdão uns aos outros pelo mal que já nos fizemos mutuamente e pela falta de unidade essencial na defesa da vida dos pobres. Pedir perdão não é se humilhar, é ser humilde.
3-   A igreja latino-americana é iluminada pelo testemunho de milhares de mártires que entregaram as suas vidas pelo Reino da justiça e da paz. Estes testemunhos nos constrangem e nos convocam às práticas evangélicas de libertação e à plena vivência do amor em comunidade. O testemunho da unidade é parte imprescindível do anúncio para que as pessoas creiam: um outro mundo é possível e necessário, mas só será possível se formos ecumênicos, ecológicos e sustentados pela economia solidária. Se não houver paz entre as pessoas, entre as igrejas e entre as religiões, não teremos paz mundial. As multidões que estão ocupando na marra a Europa parecem ser desterradas por uma Terceira Grande Guerra não declarada, mas já muito cruel.
Estes desafios da celebração ecumênica dos 500 anos da Reforma Protestante vão ser assumidos pelo CEBI nos próximos dois anos, com uma coleção de reflexões sobre o tema em chave ecumênica e popular. São pequenos textos para estudo, reflexão e animação de nossas práticas evangélicas junto ao povo de modo a que possamos ser ecumênicos assim como Jesus de Nazaré foi ao encontrar-se com uma mulher Cananeia sírio fenícia, na convivência com ela e ao testemunhar seu jeito ecumênico, acabou exclamando: “Mulher, grande é tua fé! Seja feito como tu queres! (Mt 15,28).” Aprendamos com Jesus de Nazaré que acolheu a todas e todos e se alegrou com todas as pessoas que de alguma forma demonstravam fé em Deus e fé na vida.
É na leitura popular da Bíblia e na sua metodologia de plena participação da comunidade que o ecumenismo vem sendo cultivado nos últimos anos entre nós. Esperamos que estes materiais produzidos pelo CEBI possam servir para fortalecer a alegria e a amizade entre nós, a crítica necessária construtiva e o testemunho ecumênico. O Deus da Bíblia é um Deus ecumênico. Jesus Cristo se tornou uma pessoa humano-divina ecumênica. Os apóstolos Pedro, Paulo, Barnabé, a apóstola Júnia, Lutero, tantos/as outros/as da História, o papa Francisco e tantas outras pessoas, atualmente, testemunham que seguir Jesus e o seu Evangelho exige também ser ecumênico.
Lutero buscava o ecumenismo, queria que a igreja fizesse autocrítica. Lutero nunca advogou por cisma e nunca pretendeu cair nos braços dos príncipes alemães. Mas a igreja, ao invés de fazer autocrítica, expulsou Lutero e fez uma contrarreforma se fechando a partir do Concílio de Trento, de 1545 a 1563. Mas o papa Francisco, em sintonia com a fina flor do Concílio Vaticano II (1962 a 1965), fomenta o ecumenismo.
A vida é ecumênica. Na teia da vida, relações ecumênicas são o que fertilizam os ambientes. Ser ecumênico é um desafio apaixonante e vale a pena. Boa leitura do que se segue.




[1] Frei e padre da Ordem dos Carmelitas, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação pela UFMG, assessor do CEBI, de CEBs, do SAB e da CPT; gilvanderufmg@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.brwww.gilvander.org.br . Esse texto está publicado como Apresentação do livro de RAMOS NETO, João Oliveira. A Renovação da Tradição: uma análise histórica da Reforma Protestante do século XVI aos dias de hoje. São Leopoldo: CEBI, 2016, p. 6-9.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Palavra Ética na TVC/BH: Direitos Humanos dos presos, c/ Aylton Magalhãe...

Palavra Ética na TVC/BH: 7 anos da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, ...

Raios de luz do evangelho a partir do Ceará. Por Irmã Izabel Neta e frei Gilvander

Raios de luz do evangelho a partir do Ceará.
Irmã Izabel Maria Neta[1] e frei Gilvander Luís Moreira[2]

De 20 a 24 de abril de 2016, realizamos em Caririaçu, no Vale do Cariri, Ceará, mais um Encontro do Carmelo Bíblia, da Família Carmelitana. No Carmelo de São José, 33 participantes conviveram fraternalmente, trocaram experiências e refletiram sobre o tema “Misericórdia na vida e na Bíblia.” Muitos testemunhos foram partilhados. Eis, abaixo, alguns.
Uma boa samaritana assume a defesa de um adolescente franzino que estava sendo espancado por três grandes policiais. Era uma quinta-feira à noite, em 2015, véspera de feriado na sexta-feira, na rodoviária de Fortaleza, no Ceará. Três grandes policiais prenderam um adolescente franzino, o algemaram e o levaram sob sopapos para uma salinha na rodoviária, entre os banheiros feminino e masculino. Na salinha, espancaram o adolescente que, algemado, gritava implorando misericórdia e clamando por socorro. Os gritos do adolescente sendo espancado incomodaram uma freira, irmã Izabel, que chegou naquele momento. Imediatamente, a irmã pegou sua máquina de fotografia e iniciou a filmar os policiais que espancavam o adolescente. Subitamente, os três policiais deixaram o adolescente algemado e partiram para cima da irmã que também era franzina, gritando: “Por que você está nos filmando sem nossa autorização?” A irmã de forma altaneira frente à arrogância dos policiais disse o óbvio: “Porque vocês estão torturando um adolescente. Vocês não têm o direito de fazer isso. Se ele cometeu algo ilícito, vocês já o prenderam e o algemaram. Vocês não podem torturá-lo.” Os policiais gritaram com a irmã: “Você não tem direito de nos filmar sem nossa autorização. Por que você não vai filmar quem está trabalhando? É por causa de pessoas como você, uma beata, que defende um lixo como esse, que a violência está aumentando. Queria ver se ele te estuprasse – violência psicológica -, se você o defenderia.” A irmã continuou firme: “Vocês policiais são funcionários do Estado, pagos com salário do povo para garantir segurança pública e não para atuarem como jagunços. O serviço de vocês precisa ser feito às claras e não às escondidas. Quando vocês torturam quem já está preso e algemado, indefeso, vocês deixam de ser policiais e passam a ser jagunços. A sociedade precisa saber que vocês estão cometendo um crime. Por isso pensei em filmar: para divulgar e inibir outras agressões como as que vocês fizeram. Mais: se eu fosse estuprada por ele, eu continuaria defendendo a dignidade  humana dele, como filho de Deus.” Por duas vezes ameaçaram a irmã de prisão. Chegaram a provocar: “Fale mais uma palavra e você será presa.” Irmã Izabel se calou e não respondeu mais às provocações deles, inclusive, porque temia que a me prendessem.
Dona Roseira, que pede esmola diariamente na Colina do Horto do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, CE, pedia esmola cantando, dia 23/04/2016. Entre uma música e outra, repetia: “Essa é minha cuia.” Eu brinquei: “Dona Roseira, não tenho dinheiro. Posso pegar o que está na cuia?” Ela respondeu com um sorriso largo: “Meu filho, vivo de esmola, mas se você estiver precisando, pode pegar, sim. Eu recebo de quem pode me ajudar, mas também ajudo quem está precisando. Se estiver precisando, pode pegar, sim, os trocados que estão aí na cuia.”
Outra idosa que pedia esmola no Horto do Padre Cícero, dia 23/04/2016, ao ver que eu já estava indo embora, me disse: “Você vai embora com dívida, sem doar uma esmola?” Brinquei alegando que não tinha mais dinheiro. Conversei um pouco com ela e ao me despedir, disse: “Fique com Deus!” Ela me repreendeu: “Você está mangando de Deus. Diz para eu ficar com Deus, sem deixar uma esmola!”
Um padre missionário chegou a uma comunidade de periferia da cidade de Guatu, no Ceará. Em uma caminhada religiosa, percebendo o grande número de devotos do padre Cícero, do Juazeiro do Norte, puxou um canto ensinado por padre Cícero: “Quem matou não mate mais, quem roubou não roube mais; romeiro de verdade vive na fraternidade.” Padre Cícero Romão sempre repetia esse refrão. Mas eis que o povo ficou em silêncio. Só ouvia o padre, mas não cantava. Mesmo sob convite insistente do padre para cantar, o povo não cantou com ele. Depois, após a procissão, algumas pessoas disseram no pé do ouvido do padre: “Infelizmente o tráfico de drogas está intenso aqui na nossa comunidade. Se a gente cantasse, seria interpretado como um recado indireto aos jovens envolvido com drogas aqui. Por isso fomos silenciados.”
Belo Horizonte, MG, 02/05/2016.




[1] Freira da Congregação das Missionárias Carmelitas, mora em Caririaçu; email: irmabelneta@hotmail.com
[2] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvanderufmg@gmail.comwww.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  - www.twitter.com/gilvanderluis  - Facebook: Gilvander Moreira

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