quarta-feira, 27 de outubro de 2021

De cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade. Por Frei Gilvander

 De cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Segundo a mística e a espiritualidade bíblica, o ser humano é “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,26), é cocriador – tem um infinito potencial criativo -, “nosso corpo é templo do Espírito Santo” (I Cor 6,19), ou seja, pulsa em nós um infinito potencial de humanização, sede de emancipação humana que pressupõe a superação de toda e qualquer intermediação para o ser humano se realizar enquanto ser humano. Emancipar, dentre outras coisas, implica esclarecer-se, mas não apenas em sentido intelectual. O filósofo Kant ensina que “esclarecimento é a saída dos homens de sua autoinculpável menoridade” (KANT apud ADORNO, 1995, p. 169). Superar a “menoridade”, segundo Kant, exige a capacidade do ser humano de “fazer uso de seu próprio entendimento” e “servir-se de si mesmo sem a direção de outrem” (KANT, 1985, p. 100). Sem condições materiais históricas objetivas que questionem o sistema do capital, a ideologia dominante impera e sem o esclarecimento da vontade de cada pessoa qualquer sociabilidade fica fadada ao fracasso. O pensamento não é tudo o que garante uma práxis de emancipação humana, mas “sem o pensamento, e um pensamento insistente e rigoroso, não seria possível determinar o que seria bom a ser feito, uma prática correta” (ADORNO, 1995, p. 174). Por aqui vemos a necessidade de que a luta pela terra, por moradia e por todos os direitos, seja acompanhada de estudo, reflexão, busca de conhecimento que desenvolva a consciência crítica e criativa dos sujeitos. Isso aparece de forma muito incisiva nos depoimentos dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), como, por exemplo, “a troca de experiência e de aprendizados é muito mais enriquecedora do que o repasse de conhecimentos teóricos apreendidos em livros. Aprende-se fazendo e construindo juntos” (Michele Neves Capuchinho, Sem Terra do MST do sul de Minas). Ou: “Devagar a ignorância foi diminuindo. Foi evoluindo até começar a chegar notícias dizendo que tinha acontecido uma invasão de uma fazenda em um lugar, em outro. Aí foi tombando, tombando até que Deus ajudou e o conhecimento chegou aqui no Salto da Divisa, MG” (Aulerino Lopes Do Nascimento, Sem Terra do Assentamento Dom Luciano Mendes).

O filósofo Kant percebia a tendência das pessoas a permanecer ou se refugiar na ‘menoridade’. Além disso, a liberdade individual tem sempre restrições impostas por hábitos culturais veiculados na sociedade do capital. Por exemplo: “O hábito espalhado por toda a parte de impor certos limites à prática da razão, como o oficial que diz: raciocinai, mas mantenha a disciplina dos exercícios! Do financista que afirma: raciocinai, mas pagai! Do sacerdote que afirma: raciocinai, mas crede! E, por fim, do soberano que proclama: “raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei” (KANT, 1985, p. 104). Mais do que limites à ‘prática da razão’, as relações sociais do capital impõem limites a práticas para além do capital, por exemplo: não faça greve, senão você será desempregado; não ocupe terra, senão você será considerado um invasor e poderá inclusive ser assassinado. Não advogamos uma liberdade irresponsável e sem limites, pois “a liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada” (FREIRE, 2015, p. 103).

Educação por uma emancipação humana exige exercício de pedagogias com práticas não autoritárias, ou seja, em clima de liberdade. Isso é conditio sine qua non para animar processos emancipatórios dos sujeitos. Solapa também a emancipação dos sujeitos e da sociedade o endeusamento da heteronomia, que é a crença de que é sempre outro - fora de mim e superior a mim – que legisla sobre mim, determinando o que é permitido ou proibido, certo ou errado, o que se deve fazer ou não, como viver, comportar e conviver. Emancipar-se humanamente não é apenas se tornar rebelde e protestar contra todo e qualquer tipo de autoridade. “O modo pelo qual – falando psicologicamente – nos convertemos em um ser humano autônomo, e, portanto, emancipado não reside simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade” (ADORNO, 1995, p. 176). Segundo Freud, primeiro as crianças interiorizam a autoridade do pai, assimilando-a, mas somente através de um processo doloroso e indelével descobrem que a figura paterna não corresponde ao eu ideal que aprenderam dele, “libertando-se assim do mesmo e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas” (ADORNO, 1995, p. 177).

Há uma tendência nas pessoas a aceitar aquilo que é padrão social dominante na sociedade e para quem não aceita existem esquemas de força ou de sedução para inculcar o que é hegemônico. Nesse sentido, Adorno diz: “As pessoas aceitam com maior ou menor resistência aquilo que a existência dominante apresenta à sua vista e ainda por cima lhes inculca à força, como se aquilo que existe precisasse existir dessa forma” (ADORNO, 1995, p. 178). “A emancipação precisa ser acompanhada de uma certa firmeza do eu” (ADORNO, 1995, p. 180), mas isso é um desafio em situações de constantes mudanças e de inúmeras inseguranças decorrentes do processo de exploração e expropriação perpetrado pelo capital. Enfatizamos que emancipação não se trata de uma categoria estática, mas é uma categoria dinâmica, um vir-a-ser, não um ser que é, mas pode tornar-se. Portanto, não podemos falar de pessoas ou sociedades emancipadas ou não emancipadas, mas podemos falar de pessoas ou povos em processo e movimento de emancipação humana ou não.

Os seres humanos, em processo de emancipação humana, pela ação concreta seguem por um caminho de envolvimento histórico, asfixiando, assim, o desenvolvimento histórico que aparenta ser inexorável. Ao tirar o oxigênio do metabolismo do capital, negando-o, lutando pelo fim da propriedade privada dos meios de produção e inaugurando outra relação social de produção para além do capital, na qual o valor de uso seja critério entre os intercâmbios humanos e que se respeite a equação: de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade. “A emancipação humana segue em sua ação prática uma rota oposta ao desenvolvimento histórico. Ao realizar uma revolução e quebrar o metabolismo do capital (ou iniciar sua negação) pela negação da propriedade privada dos meios de produção e a negação da força de trabalho como mercadoria, não se quebra a produção de mercadorias, prevalecendo ainda o critério do valor como medida do intercâmbio entre o trabalho oferecido e os produtos retirados por cada um do fundo social. Para superar a lógica da mercadoria é necessário reestabelecer a determinância do valor de uso, chegando, assim, à famosa equação de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade” (IASI, 2011, p. 73).

27/10/2021

Referências

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

______. Crítica cultural e sociedade. In: COHN, G. Theodor W. AdornoSão Paulo: Ática, 1985.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Noite Cultural 34ª Romaria de Canudos, BA: Viva Antônio Conselheiro e as lutas populares! - 23/10/21

2 - “Sem decisão judicial, PBH proíbe famílias de concluir suas casas nas Ocupações"- Vídeo 11 –15/10/21

3 - Frei Gilvander exige da PBH, COPASA e CEMIG água e energia nas Ocupações da Izidora.Vídeo 7-15/10/21

4 - “BH deixa 130 ocupações sem rede de água e energia. 9.000 famílias só na Izidora" -Vídeo 5 –15/10/21

5 - "As 8 mil famílias da Izidora estão sendo violentadas pelo poder público." Edna. Vídeo 4 - 15/10/21

6 - “Não dá mais para tolerar o descaso do Poder Público com famílias das ocupações”. Vídeo 3 – 15/10/21

7 - “Ocupação Helena Greco, BH: 11 anos clamando por água e energia. Cadê COPASA e CEMIG?” (Andresa).V.2

8 - “Basta de falta d'água e energia nas Ocupações da Izidora! PBH e Governo de MG?” -Charlene/Rosa Leão



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Emancipação humana é possível? Por Frei Gilvander

Emancipação humana é possível? Por Frei Gilvander Moreira[1]



Emancipação humana não se trata apenas da relação entre religião e emancipação política. Não basta a desalienação religiosa para o ser humano se emancipar humanamente. “O problema de fundo no pensamento marxiano encontra-se no fato de o ser humano não se reconhecer como humano, atribuindo sua sociabilidade para algo além de si” (IASI, 2011, p. 49-50), o que o impede de ser sujeito da história humana. Marx conclui que “a questão da relação entre emancipação política e religião transforma-se para nós na questão da relação entre emancipação política e emancipação humana” (MARX, 2010, p. 38). O processo revolucionário de emancipação humana exige a “irrupção de uma classe com elos radicais, de uma classe da sociedade civil burguesa que não é uma classe da sociedade civil burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados sociais” (MARX, 2010, p. 17).

A emancipação humana pressupõe a superação de toda e qualquer intermediação para o ser humano se realizar enquanto ser humano. Nem a religião, nem o Estado, nem o mercado, nem o patrão, ninguém pode ser intermediário na ação humana emancipada. “O homem não é um homem abstrato “agachado fora do mundo”, é o “mundo do homem”, o homem em sociedade que produz, troca, luta, ama. É o Estado, é a sociedade” (MARX, 2010, p. 25). As inversões engendradas pela produção e reprodução da vida segundo o modo de produção capitalista aparecem no Estado, mas são produzidas pelos seres humanos ao se venderem como mercadoria para um capitalista que lucra, acima de tudo, com a mercadoria força de trabalho produzindo mais-valia e, assim, acumulando capital. Se apenas o Estado e a classe dominante fossem violentos seria menos difícil o processo de emancipação, mas a violência está assimilada e interiorizada pelos indivíduos, o que faz com que a violência do Estado e do capital apareça como desvios, excrescência e não como sua própria natureza. Portanto “a emancipação humana – tal como pensada por Marx, como a restituição do mundo e das relações humanas aos próprios seres humanos – exige a superação de três mediações essenciais: da mercadoria, do capital e do Estado” (IASI, 2011, p. 56).

Para Marx a emancipação religiosa se insere no bojo da emancipação humana. Nesse sentido ele afirma: “O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado” (MARX, 1996, p. 205).

Concordamos com Marx e Feuerbach quanto à crítica da religião, porém não excluímos todo e qualquer tipo de expressão religiosa. De fato há em muitas práticas religiosas – não em todas - alienação, estranhamento e, pior, encobrimento de opressões e violências perpetradas nas relações sociais capitalistas que uma religião burguesa ofusca e, por isso, se torna cúmplice do sistema capitalista. Mas, advogar que em uma sociedade emancipada humanamente os seres humanos não terão mais necessidade de práticas religiosas somente a história humana poderá dizer se isso se cumprirá ou não. Desde a Teologia da Libertação não vemos incongruência entre superar as relações do capital e todas as formas de opressão e, assim, criar um novo homem e uma nova mulher em uma sociabilidade revolucionada e revolucionária para além do capital e cultivar uma dimensão religiosa que vê no humano o divino. Óbvio que enquanto houver produção e reprodução material sob a égide do capital haverá alienação religiosa. “Faz-se necessário mudar as relações que produzem e reproduzem o fetichismo e a reificação” (IASI, 2011, p. 57).

Em uma sociedade de classes sempre será necessário uma espécie de Estado que consolide e legalize a dominação de uma classe sobre a outra. Nesse ponto, a luta pela terra e pela moradia questiona até o Estado, por meio do seu braço jurídico, que é o poder judiciário, o qual, via de regra, julga as ocupações de terra como se fossem esbulho e não como legítimas ações coletivas que postulam o cumprimento de um direito constitucional.

A emancipação humana se torna impossível sem a superação de todas as mediações que se colocam entre o humano e seu mundo e inclui a utopia com raízes na história de que o destino humano seja assumido de forma consciente, planejado e governado pelos próprios seres humanos, pela sua ação concreta, vivenciando e construindo uma sociabilidade sem opressores e oprimidos, sem patrões e empregados, sem capital, sem relações sociais que produzem mercadoria que viabilize mais-valia e acumulação do capital. Assim, o fundamento da emancipação humana está na possibilidade de os seres humanos protagonizarem o controle da história e da sua existência de forma consciente e planejada. 

19/10/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.  

______. O Capital: crítica da economia política (Vol. 1, Livro 1). O processo de produção do capital. Tomo 1, Capítulos I a XII. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - “Ocupação Helena Greco, em Belo Horizonte, há 11 anos clama por rede de água e energia. Cadê COPASA e CEMIG?” (Andresa, Coord. Ocupação Helena Greco. Vídeo 2.

2 - “Basta de falta d'água e energia nas Ocupações da Izidora! PBH e Governo de MG?” -Charlene/Rosa Leão

3 - “MP com boca sem dente?” Frei Gilvander: "PEC 05/21 retira autonomia do Ministério Público"–18/10/21

4 - Violações de direitos nas Comunidades da Izidora/BH: Debate em Audiência Pública/ALMG - 16/10/2021

5 - Bairros periféricos de Ibirité, MG, na rota do Rodoanel. Vem aí devastação! Uai! Vídeo 9 – 10/10/21

6 - Palavra Ética na TVC/BH: PBH violando Direitos das Ocupações da Izidora e Tributo a Zé Veio -28/9/21

7 - “Fora, Rodoanel da RMBH!” Na TVC/BH no Palavra Ética. Fora, Rodominério ecocida e hidrocida –18/8/21



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Luta contra o Rodoanel na RMBH no Palavra Ética da TVC/BH: Rodoanel não vai resolver ... – 28/08/21

Luta contra o Rodoanel na RMBH no Palavra Ética da TVC/BH: Rodoanel não vai resolver ... – 28/08/21


terça-feira, 12 de outubro de 2021

Quanto mais capitalismo, mais superexploração. E a luz da cruz? Por Frei Gilvander

Quanto mais capitalismo, mais superexploração. E a luz da cruz? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Durante a marcha histórica do capitalismo, “a força externa que impunha a atividade ao indivíduo se internalizou; agora no contexto da igualdade “natural” dos indivíduos, cada um aparece como um sujeito atomizado buscando seu próprio interesse enquanto, de fato, realiza o interesse do capital social total” (IASI, 2006, p. 217). Mas como tudo o que é sólido se desmancha no ar, com a evolução desenfreada das forças produtivas, o que faz aumentar a exploração dos trabalhadores, dos camponeses, da terra, das águas e de toda a biodiversidade, as ideias da classe dominante por si mesmas não conseguem mais justificar a crescente opressão: exploração e expropriação, crescentes em progressão geométrica. Cria-se uma crise ideológica e muitos trabalhadores adquirem uma consciência diferente ao perceber que o interesse da classe dominante não é interesse universal, mas ilusões e hipocrisias deliberadas que sopram vento no moinho do capital. “Quanto mais a forma normal das relações sociais e, com ela, as condições da classe dominante acusam a sua contradição com as forças produtivas, quanto mais cresce, em decorrência, o fosso cavado no seio da própria classe dominante, fosso que separa esta classe da classe dominada, mais naturalmente se torna nestas circunstâncias, que a consciência que originalmente correspondia a esta forma de relações sociais se torna inautêntica: dito por outras palavras, essa consciência deixa de ser correspondente, e as representações anteriores que são tradicionais desse sistema de relações [...] degradam-se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em ilusão consciente, em hipocrisia deliberada” (MARX; ENGELS, 2007, p. 283).



Uma segunda forma possível de consciência como processo não linear em movimento trata-se da consciência em si que pode ocorrer quando as pessoas agem coletivamente e vislumbram, para além da possibilidade de se revoltar isoladamente, uma possibilidade de alterar as  relações de espoliação do capital. Nesse ponto, as trabalhadoras e os trabalhadores agindo em grupo tecem relações que explicitam os elos e a identidade do grupo e seus interesses próprios, que contrastam com os interesses de quem lhes são opostos. Nessa fase, “o proletariado ao se assumir como classe, afirma a existência do próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um pouco maior do que recebia antes” (IASI, 2011, p. 31). É a fase corporativa, aquela que pauta a luta por reivindicar melhores salários e melhores condições de trabalho “para mim, para nós”: os trabalhadores de uma empresa específica. Não questionam o sistema do capital, apenas reivindicam uma fatia um pouco maior das migalhas que recebem ao vender sua força de trabalho ao patrão. “Quem reivindica ainda reivindica de alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas” (IASI, 2011, p. 31). Trabalhadoras e trabalhadores que assim lutam ainda estão dentro das relações do capital e muito longe de emancipação humana, que é fazer a história com as próprias mãos, superando todo e qualquer tipo de exploração, seja humana, seja ecológica. Apenas se reconhecendo como classe proletária os trabalhadores negam o capitalismo afirmando-o, questiona-o, mas aceitam-no como modo de vida social.

Nós, seres humanos, – trabalhadores e camponeses - temos condições de construir a nossa história com as próprias mãos, mas não de forma independente como quisermos. “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhe as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p. 25). Na sociedade capitalista o indivíduo é o foco como se fosse uma célula isolada e autossuficiente; é levado a agir dentro do seu tempo de vida, até a morte. Diferentemente, em perspectiva emancipatória da classe que age em grupo, coletivamente, a história é feita por nós, mas continua sendo feita após nossa morte. Assim, na luta pela terra e por moradia, os Sem Terra e os Sem Teto não terminam em si mesmos, pois se tornam raios de luzes para os que nos seguirão após nossa morte. Nesse tom, canta Victor Jara sobre a morte do padre Camilo Torres, tombado no fronte de luta dos revolucionários colombianos, dia 15 de fevereiro de 1966: “Onde caiu Camilo nasceu uma cruz, porém não de madeira, mas de luz”.[2]

O conceito marxiano de emancipação humana se coloca na contraposição de emancipação política e aparece na obra Sobre a questão judaica como crítica a Bruno Bauer. Para Marx não basta perguntar quem seria emancipado, porque “não há mais emancipação pura e simples. Seu problema é precisamente esclarecer de que emancipação se trata” (MARX, 2010, p. 21). Marx alerta que não dá para se contentar apenas com emancipação política. Diz ele que “desde 1844, não se trata mais de refazer o caminho da Revolução Francesa, de marchar sobre seus rastros, mas de empreender uma revolução inédita, inaudita, sem precedente. Não se trata de obter somente a emancipação política, mas de atingir a emancipação humana” (MARX, 2010, p. 16). Até porque a tríade da Revolução Francesa era liberté, égalité e fraternité (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), mas com o fortalecimento do poder econômico da burguesia a fraternité desapareceu e foi substituída pela onipotente proprieté (Propriedade), que no capitalismo ganhou ares quase absoluto reduzindo a liberté e a égalité aos seus aspectos formais e abstratos.

12/10/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

_______. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

______.  Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.  

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

 

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Rodoanel na Fazenda do Rosário, Associação Pestalozzi, Jd. do Rosário, Ibirité/MG. Vídeo 7 –10/10/21

2 - Rodoanel afetará brutalmente a região da Fundação Helena Antipoff em Ibirité, MG. Vídeo 6 – 10/10/21

3 - Em Ibirité, MG, o Rodoanel do Zema e da Vale S/A trará brutal devastação também. Vídeo 5 – 10/10/21

4 - "Tem que garantir moradia p/ famílias da Ocupação Irmã Dorothy, Salto da Divisa/MG." (Dr. João, DPU)

5 - Território Geraizeiro, norte de MG: atentado brutal, incêndio criminoso, no município de Grão Mogol

6 - Gigante Ato Público e Marcha por “FORA, BOLSONARO!”, Belo Horizonte/MG. Por Frei Gilvander, 02/10/21



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] https://www.youtube.com/watch?v=_rllf7Df10o&feature=youtu.be : 50 anos do martírio de Padre Camilo Torres.

Rodoanel na RMBH devastará a região da Associação Pestalozzi, Jardim do Rosário e outros bairros de Ibirité, MG, também. Vídeo 8 – 10/10/2021.

Rodoanel na RMBH devastará a região da Associação Pestalozzi, Jardim do Rosário e outros bairros de Ibirité, MG, também. Vídeo 8 – 10/10/2021.


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Frei Gilvander na Rádio Itatiaia, dia 05/10/2021, defendendo os Direitos de 130 Ocupações de Belo Horizonte, MG

Frei Gilvander na Rádio Itatiaia, dia 10/05/2021, defendendo os Direitos de 130 Ocupações de Belo Horizonte, MG

Fazenda do Rosário, Associação Pestalozzi, Jardim do Rosário e outros bairros de Ibirité, MG, estão no trajeto do Rodoanel e poderão sofrer brutal devastação. Vídeo 7 – 10/10/2021.

Fazenda do Rosário, Associação Pestalozzi, Jardim do Rosário e outros bairros de Ibirité, MG, estão no trajeto do Rodoanel e poderão sofrer brutal devastação. Vídeo 7 – 10/10/2021.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

(De)formação da consciência no sistema do capital. Por Frei Gilvander

(De)formação da consciência no sistema do capital. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas” (MARX [1875], 2012, p. 22, em carta a Wilhelm Bracke). Na sociedade do capital, “mundo antagônico ao humano e à vida” (IASI, 2011, p. 9), e especificamente no capitalismo, sistema histórico atual da sociedade em que vivemos, a sociabilidade é organizada em classes – a dos proprietários dos meios de produção (terra, indústria, fábrica etc.) e do capital financeiro, a dos trabalhadores expropriados da propriedade dos meios de produção – classe trabalhadora e campesinato -, uma pequena burguesia, eufemisticamente chamada de ‘classe média’, classes com interesses antagônicos inconciliáveis. A classe dominante, ao dominar, espolia e superexplora cada vez mais a classe trabalhadora e o campesinato. Acontece assim opressão de classe, o que suscita indignação e desencadeia rebeliões fazendo eclodir a luta de classes, que na sua dinâmica articula os aspectos objetivos e subjetivos que podem caminhar para a formação dos trabalhadores enquanto classe proletariada, não apenas como uma classe explorada da sociedade do capital, mas uma classe que se opõe ao capital e pode se tornar portadora de novas relações sociais para além do capital, em um novo tipo de sociabilidade humana emancipada.

A consciência não é tudo, mas sem ela não é possível empreender uma caminhada/luta de emancipação humana. Julgamos pertinente e necessário elucidar o que seja consciência e como ela se forma ou se deforma. Consciência não é uma coisa. Se fosse, ao adquiri-la a teríamos pronta e acabada. E se não a tivéssemos, estaríamos em uma situação de “não consciência”. Mas consciência envolve processo, um movimento e não é algo dado e acabado. Assim como, segundo a filosofia existencial sartreana, o homem não é, mas se torna. “A existência precede a essência. [...] O homem não é mais que o que ele faz” (SARTRE, 1978, p. 6). Assim, também “a consciência não é”, “se torna”” (IASI, 2011, p. 12). Se o processo de emancipação humana implica e exige a formação de uma consciência humana para além do capital, é necessário compreendermos como se forma ou se deforma a consciência e seu processo de evolução ou de involução. A consciência se forma em várias fases ou formas. “A consciência é gerada a partir e pelas relações concretas entre os seres humanos, e desses com a natureza, e o processo pelo qual, em nível individual, são capazes de interiorizar relações formando uma representação mental delas” (IASI, 2011, p. 14).

Na luta pela terra e pela moradia, na sua preparação de base, na ocupação de um latifúndio que não cumpre sua função social, de um terreno ocioso ou prédio abandonado e na resistência para impedir despejo (reintegrasse de posse) uma série de relações concretas se estabelece entre os Sem Terra e os Sem Teto envolvidos na luta comum por bens comuns: terra e moradia. As condições objetivas estabelecidas na luta pela terra e pela moradia incidem sobre as consciências das pessoas, conclamando-as para abraçar processos emancipatórios. Por outro lado, quando as trabalhadoras e os trabalhadores permanecem isolados vendendo a si mesmos ao vender sua força de trabalho no altar do capital – mercado idolatrado -, outras condições objetivas, aqui as do capital, incidem moldando as consciências segundo a ideologia dominante, a que beneficia os interesses da classe dominante. “A primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações sociais é a família” (IASI, 2011, p. 15). Uma família comprometida na luta pela terra e/ou pela moradia não estará tão indefesa nas garras da consciência trombeteada aos quatro ventos pelo capital.

A classe dominante domina não apenas porque detém o poder econômico do capital, mas também porque seus indivíduos têm consciência, são pensadores e produzem ideias que são veiculadas como se fossem ideias universais. “Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Acima da família, é no mundo do trabalho que a consciência é (de)formada. A lógica imposta pelo capital é assimilada e interiorizada pela maioria dos trabalhadores que vão ‘espontaneamente’ ao altar do ídolo mercado para serem sacrificados um pouco a cada dia. “As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Observe-se que as ideias dominantes se tratam de expressão ideal das relações materiais dominantes e não apenas expressão ideológica, como muitas vezes é traduzido. Por ser expressão ideal, no nível das ideias, as ideias dominantes são algo também ideológico no sentido de que escondem as relações de opressão embutidas nas relações sociais do capital. Assim, a primeira forma de consciência normalmente é alienada, pois, ao assimilar as experiências próximas e concretas, tende-se a amoldar a uma forma que naturaliza o que é construído historicamente em relações de poder. “A família, que antecede, no tempo, sua ação no indivíduo em relação às atividades econômicas de produção, é por sua vez determinada por essas relações, na verdade as mediatiza. Aquilo que determina é determinado” (IASI, 2011, p. 26). Não nascemos em uma família tábula rasa e nem em uma sociedade no seu ponto zero. Desde o ventre materno já somos influenciados/condicionados e, ao nascer, caímos em um mundo do capital, no nosso caso, no sistema capitalista. As famílias que determinam em parte a consciência de seus filhos são determinadas pelo sistema do capital, que parece ser uma forma incontrolável de controlar as pessoas - e toda a biodiversidade -, como afirma István Mészáros: “Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é simplesmente uma “entidade material” – também não é um “mecanismo” racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro “mecanismo de mercado” (a ser alegremente abraçado pelo “socialismo de mercado”) – mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico” (MÉSZÁROS, 2011, p. 96).

Enfim, para início de conversa, para compreendermos a formação ou a deformação da consciência em uma sociedade capitalista não basta analisar as ideias que circulam no meio social, mas é imprescindível compreender a trama das relações sociais de opressão e exploração que condicionam e muitas vezes determinam a construção ou destruição de consciência emancipatória.

06/10/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. 1ª edição revista. São Paulo: Boitempo, 2011.

 

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Rodoanel demolirá milhares de casas na RMBH. Carro de som NAS RUAS de bairros de BH -Vídeo 4–3/10/21

2 - Carro de som NAS RUAS CONTRA o Rodoanel: Mineirão e Independência/BH. Alenice/Henri. Vídeo 3–3/10/21

3 - Gigante Ato Público e Marcha por “FORA, BOLSONARO!”, Belo Horizonte/MG. Por Frei Gilvander, 02/10/21

4 - Protagonismo da Ocupação Cidade de Deus, Sete Lagoas, MG, 29/9/21. VISITA de autoridades. Vídeo 2

5 - Visita à Ocupação Cidade de Deus, Sete Lagoas: Dr. Afonso, Dr. Paulo, Dom Francisco. Vídeo 1-29/9/21

6 - Povo fica indignado ao saber da brutalidade do Rodoanel no Barreiro em BH e RMBH. Vídeo 2 - 25/09/21

7 - Socorro! Idosos sem água e sem energia na Ocupação Vitória na Izidora em BH. Cadê COPASA? - 23/09/21



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Rodoanel demolirá milhares de casas na RMBH. Carro de som NAS RUAS alertando o povo sobre a brutalidade que será o Rodoanel na RMBH de BH. Bairros, Independência e Águia Dourada, em BH. Pedro e Frei Gilvander - Vídeo 4

Rodoanel demolirá milhares de casas na RMBH. Carro de som NAS RUAS alertando o povo sobre a brutalidade que será o Rodoanel na RMBH de BH. Bairros, Independência e Águia Dourada, em BH. Pedro Cardoso e Frei Gilvander - Vídeo 4 – 03/10/2021.




Carro de som NAS RUAS CONTRA o Rodoanel nos bairros Mineirão e Independência, em Belo Horizonte, MG, alertando o povo que o Rodoanel trará brutal demolição de milhares de moradias, inclusive. Alenice Baeta e Henrique Lazarrotti. Vídeo 3 – 03/10/2021.

Carro de som NAS RUAS CONTRA o Rodoanel nos bairros Mineirão e Independência, em Belo Horizonte, MG, alertando o povo que o Rodoanel trará brutal demolição de milhares de moradias, inclusive. Alenice Baeta e Henrique Lazarrotti. Vídeo 3 – 03/10/2021.

Mov. de BH e RMBH CONTRA o Rodoanel NAS RUAS: São Pedro, Mineirão e Independência, em BH - vídeo 2 - 03/10/2021

Mov. de BH e RMBH CONTRA o Rodoanel NAS RUAS: São Pedro, Mineirão e Independência, em BH - vídeo 2 - 03/10/2021