terça-feira, 27 de outubro de 2020

Doar a vida na luta pela terra: causa justa! Por Frei Gilvander

Doar a vida na luta pela terra: causa justa! Por Frei Gilvander Moreira[1]

Ênio Pasqualin, liderança do MST/PR, assassinado na noite de 24/10/2020. Foto: Arquivo MST

Dia 24 de outubro de 2020, no interior do Paraná, no Assentamento Ireno Alves dos Santos, no município de Rio Bonito do Iguaçu, Ênio Pasqualin, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, após ser sequestrado, foi assassinado a tiros. Mais um mártir da luta pela terra no Brasil. Por causa de um pouco de terra, por uma fatia de pão, mataram mais um irmão…”. O latifúndio e o agronegócio matam, mas venceremos. Nosso abraço solidário à família de Ênio e ao MST. O sangue de Ênio continuará correndo em nossas artérias. Honraremos sua/nossa luta justa e necessária. A história demonstra que quanto mais repressão, mais a luta pela socialização da terra cresce. Eis um exemplo a seguir.

Geralda Magela da Fonseca, carinhosamente chamada Irmã Geraldinha, das Irmãs Dominicanas, foi ameaçada de morte inúmeras vezes durante vários anos por causa da luta pela terra no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, em Minas Gerais. Quando identificadas, as ameaças eram sempre vindas de pessoas ligadas aos latifundiários do município. Em um único dia, ela chegou a receber três telefonemas no seu celular, de números não identificados. Depois as ameaças eram ouvidas por companheiros/as do acampamento ou por amigos/as na cidade de Salto da Divisa. No Acampamento Dom Luciano, do MST[2], Irmã Geraldinha tinha seu barraco de madeira e palha. Ela teve que passar a dormir em barracos diferentes a cada noite no acampamento para não ser pega de surpresa por jagunços. Companheiros/as da comissão de segurança do acampamento Dom Luciano Mendes conseguiram livrar a irmã Geraldinha de três emboscadas ao descobrir que ela estava sendo esperada em tocaia. Avisada, ela mudou o horário de passar no local e passou sob escolta dos companheiros. Em outra tentativa, quatro pessoas em automóvel cor preta, dia 29 de outubro de 2007, foram vistas próximas ao acampamento procurando por irmã Geraldinha e no dia seguinte, na cidade de Salto da Divisa, alguém em um automóvel cor preta procurava por ela.[3] Em uma das ameaças, a mensagem era: “Você vai parar de apoiar o MST e essa luta quando acontecer com você o que aconteceu com a irmã Dorothy Stang”.[4] Após visita ao Acampamento Dom Luciano, dia 17 de setembro de 2009, uma comissão de representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República expediu um Parecer demonstrando a gravidade do conflito agrário instalado em Salto da Divisa e também a gravidade das ameaças à Irmã Geraldinha e a outros membros do Acampamento.[5] No Parecer se afirma: “É inconteste o fato de que tais violações têm sido causadas por fazendeiros da região e por policiais civis e militares, sendo que todas elas são decorrentes das atividades em defesa dos direitos humanos realizadas pela Irmã Geraldinha e por membros do Acampamento Dom Luciano. Faz-se necessário, ainda, que sejam feitas articulações com autoridades públicas estaduais e locais no sentido de que se tomem as providências legais para que as causas das ameaças sejam resolvidas pelos órgãos competentes” (MANIFESTO DA CPT/MG, 30/10/2009).[6]

Irmã Geraldinha, mesmo após visitar sua mãe e saber que a notícia das ameaças de morte já tinham chegado a ela e aos seus 15 irmãos, reafirma sempre: “Estou disposta, sim, a entregar minha vida por essa causa justa dos movimentos populares se necessário for, se tiver que ser, para que o povo conquiste a terra e para que a reforma agrária aconteça no nosso país, pois sem a distribuição das terras devolutas e dos latifúndios improdutivos que não cumprem sua função social não haverá justiça, nem vida e nem paz na sociedade. É claro que não vou entregar de bobeira minha vida. Vamos tomar as precauções necessárias, mas estou disposta, sim, a entregar minha vida para que a luta pela terra possa continuar” (Irmã Geraldinha à TVC/BH no Programa Inconfidências Mineiras).[7]

Orozimbo da Cunha Peixoto, o co­ronel Zimbu, avô do prefeito Ronaldo Cunha Peixoto, tinha vários jagunços para eliminar quem o incomodava. Uma testemunha que vive na região há várias décadas, que não aceita se revelar por temer ser assassinada, afirma: “Essas fazendas aqui do Baixo Jequitinhonha foram tomadas na marra. Eles man­davam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria tam­bém”.

A entrada do acampamento Dom Luciano Mendes passou a ser controlada por equipe de sentinelas 24 horas por dia, um grupo de mulheres se revezando durante o dia e um grupo de homens durante toda a noite, sempre com alguns foguetes para explodir e chamar todas as famílias em caso de alguma coisa estranha. Uma corrente forte foi colocada na entrada do acampamento para impedir a entrada de automóveis ou motocicletas estranhos, sem autorização. Além da entrada do acampamento, à noite, um grupo de companheiros mantém ronda em todo o acampamento e seu entorno com lanternas. Após cobranças do MST e da CPT[8], o comando da PM em Salto da Divisa foi trocado e uma viatura da PM passou a ir ao acampamento duas ou três vezes por dia. Isso também inibiu os ameaçadores. A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ameaçados, a Defensoria Pública Estadual e a Defensoria Pública da União, entre outras organizações, contribuíram para que as denúncias e reivindicações das famílias acampadas em Salto da Divisa fossem ouvidas.

Após ameaças, dia 28 de julho de 2009, quatro pessoas chegaram às proximidades do acampamento em um automóvel e atearam fogo no pasto ao redor do acampamento. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou. Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito extemporaneamente em eleição dois dias antes, Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto, e presidente da Fundação Tinô da Cunha Peixoto na época, que alegava ser proprietária das terras da Fazenda Manga do Gustavo e da Fazenda Monte Cristo. Policiais demoraram a atender ao chamado dos acampados e, pior, ao chegarem ao local do incidente lavraram Boletim de Ocorrência acusando irmã Geraldinha e os acampados de cárcere privado dos quatro agressores que estavam no automóvel. Irmã Geraldinha teve que viajar até a Cidade de Jacinto – cidade vizinha - para, na delegacia, lavrar um Boletim de Ocorrência relatando os fatos verdadeiros sobre a tentativa de incendiar o acampamento.

Para inibir as investidas dos latifundiários e jagunços ameaçando irmã Geraldinha e outras lideranças do Acampamento Dom Luciano Mendes organizamos uma significativa Rede de Apoio, inclusive, internacional. O bispo Dom Tomás Balduíno, fundador e presidente honorário da CPT por muitos anos, visitou o acampamento e, ao lado do bispo da Diocese de Almenara, na época, Dom Hugo Maria Van Steekelenburg, e de outras freiras e freis, fez missão na cidade de Salto da Divisa hipotecando irrestrito apoio à causa da luta pela terra. Isso contribuiu para frear a ira assassina contra irmã Geraldinha.

Com a postura aguerrida de Irmã Geraldinha de não arredar o pé da luta, mesmo sob ameaças de morte, a luta cresceu e hoje, em Salto da Divisa, MG, já foram conquistados dois assentamentos – Assentamento Dom Luciano Mendes e Assentamento Irmã Geraldinha – e a Comunidade Quilombola Braço Forte. Enfim, eis um sinal de que as ameaças e os assassinatos não barram a luta, ao contrário, fazem a luta se multiplicar. Se fazem sexta-feira da paixão, façamos domingos de ressurreição com terra partilhada e socializada, convictos de que o sangue dos/as mártires e o suor da luta fecundam o chão... Porvir de ressurreição!

27/10/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Live Campanha pelo DESPEJO ZERO: pelo direito à vida. Despejar na pandemia é matar, é cruel. 05/8/20

2 - "A VALE preparou uma armadilha para matar o povo de Brumadinho, MG." Justiça! Vídeo 7 - 13/12/2019

3 - VALE e Estado mataram o rio Paraopeba, peixes e pescadores na miséria. Vídeo 1. 19/4/2019

4 - Dona Zinha, da Ocupação Vitória/Izidora/BH: "despejo matará todos os idosos das Ocupações." 19/11/2016

5 - Dia 25 de julho: Dia da/o trabalhador/a rural, Mulher Negra, Pai Nosso dos Mártires/1,6 ano de crime

6 - Padre Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes). 24/7/2020: 35 anos

7 - Mártires vivos na IV Romaria das Águas e da Terra da Bacia do ex-rio Doce. Vídeo 5 - 02/6/2019



 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br

[3] Denúncia feita por irmã Geraldinha em Boletins de Ocorrência e a muitas autoridades, inclusive no Programa Inconfidências Mineiras, da TV Comunitária de Belo Horizonte, em 60 minutos de entrevista, dia 09/11/2009,  disponibilizada no You Tube em seis partes. Na 3ª parte está a denúncia das ameaças, acima, descritas. Cf. o link https://www.youtube.com/watch?v=Ek3e-ECzGCQ

[4] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY em 7’08ss

 

[5] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY

[7] Cf. a 4a e a 5ª parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha nos links  https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY , e https://www.youtube.com/watch?v=UuLxq8v64M4

[8] Comissão Pastoral da Terra – www.cptnacional.org.br

terça-feira, 20 de outubro de 2020

A fogueira do Grande Inquisidor. Por Frei Gilvander

 A fogueira do Grande Inquisidor.  Por Frei Gilvander Moreira[1]

Rio de Janeiro- RJ- Brasil- 03/12/2014- Ativistas da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, participam de ato no Dia Internacional de Luta contra os Agrotóxicos, em frente Câmara de Vereadores. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Ao escrever O Grande Inquisidor, um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance “Os Irmãos Karamazov”, Fiódor Dostoiévski, em 1879, parece que estava revelando a Inquisição em pleno vapor no Brasil, em 2020, sob o arbítrio de muitos Grandes Inquisidores, disfarçados. Lobos em pele de ovelhas, com sede de sangue, continuam atiçando a fogueira da fome, na qual o estômago de mais de 10 milhões de irmãs e irmãos nossos ronca e faz o corpo tremer como se estivesse sendo eletrocutado por fios elétricos de tortura. Mães e avós muitas vezes têm que reprimir as lágrimas para não chorar na presença de filhos/as e netos/as implorando por um pedaço de pão. Centenas de agrotóxicos, que não são defensivos agrícolas, mas produtos tóxicos, injetam arma química no prato do povo brasileiro que, ao comer, está contraindo câncer, obedecendo cegamente os ditames de um mercado idolatrado. Agronegociantes com exagero de agrotóxico mandam para a fogueira do câncer mais de 700 mil pessoas por ano. Por ano, mais de 250 mil pessoas estão sendo mortas na fogueira da inquisição do câncer, epidemia causada principalmente pelo exagero de agrotóxicos e produtos enlatados. “Leite na caixinha é veneno puro”, me disse um trabalhador que trabalhou 18 anos em um laticínio de uma transnacional. Além disso, o agronegócio e seus executivos como Grandes Inquisidores seguem desertificando os territórios e empurrando os camponeses para as periferias das grandes cidades e jogando-os no meio de uma guerra civil não declarada. Agronegócio, um Grande Inquisidor, exterminador do futuro da humanidade.

O Grande Inquisidor, em outras vestes e em faces metamorfoseadas no Brasil, também está instalado nas grandes mineradoras que como dragão do Apocalipse, de forma cruel e bárbara, seguem planejando e cometendo crimes/tragédias com requintes de crueldade, arrasando territórios, apunhalando as montanhas, exterminando as fontes de água e sacrificando rios e povos. Só em Minas Gerais, com mais de 300 anos de superexploração minerária, as empresas de mineração controlando o Estado deixaram um rastro de milhares de mortos, soterrados vivos ou morrendo um pouco a cada dia de silicose, depressão ou outras várias doenças contraídas em trabalhos extenuantes. Não podemos esquecer que dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a mineradora Vale, assassina contumaz e reincidente, “sepultou vivos 272 filhas e filhos nossos”, clamam os parentes que sobrevivem vertendo lágrimas. Foi um crime/tragédia da mineradora Vale em conluio com o Estado, em Brumadinho, MG. Esse crime continua e cresce todos os dias. “Todo dia é dia 25” se tornou lema dos milhares de vítimas do Grande Inquisidor também instalado nos grandes projetos de mineração que tritura a mãe terra, superexplora a dignidade da pessoa humana e apunhala mortalmente a dignidade de todos os seres vivos.

A Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, da CPT, desde 1997, demonstra que mais de 30 mil trabalhadores continuam anualmente submetidos à situação análoga à de escravidão. O pelourinho, o chicote e o tronco continuam violentando a dignidade humana em monoculturas da cana, do eucalipto, do café, de grandes projetos de mineração, na construção civil, na produção de roupas e calçados, em telemarketing etc.

Por integrar uma das dez Comissões do CNDH[2] sei que são ameaçados de morte no nosso país milhares de militantes que lutam por justiça social e direitos humanos fundamentais. Perseguir, ameaçar e tentar tirar a paz e o sono de quem luta por justiça social são tarefas macabras cumpridas por jagunços, milícias armadas com a cumplicidade de um Estado que aplica o direito penal máximo para os empobrecidos e o direito civil/empresarial benevolente para as grandes empresas. Desde 1985, a CPT publica anualmente um grande livro intitulado Conflitos no Campo Brasil, que demonstra que nos últimos 46 anos, mais de 3.000 lideranças camponesas foram assassinadas pelo Grande Inquisidor latifúndio-latifundiário-agronegócio de várias formas: por degola, enforcamento, metralhados, fuzilados, em emboscadas, pelas costas, da garupa de um motoqueiro cúmplice etc. E, pior, há impunidade em demasia para os jagunços e principalmente para os mandantes. E há punição em demasia para os pobres, negros e juventude de periferia.

Precisamos recordar uma característica fundamental dos Evangelhos da Bíblia, principalmente dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): na primeira parte dos evangelhos sinóticos – 1ª fase da missão de Jesus Cristo -, a característica básica é a SOLIDARIEDADE, com ternura, compaixão e misericórdia. Entretanto, no meio da missão acontece uma “crise galilaica”: Jesus faz análise de conjuntura e descobre que está sendo ingênuo, pois mesmo fazendo os milagres no varejo, via processo de solidariedade, está aumentando o número de famintos, de paralisados, de cegados, de excluídos. Jesus percebe que precisa dar uma guinada no rumo da missão e passar a denunciar os podres poderes da religião, da política e da economia e quem reproduz estes poderes. Por isso, na segunda parte dos evangelhos sinóticos – 2ª fase da missão pública de Jesus -, a característica básica passa a ser LUTA POR JUSTIÇA. Jesus Cristo foi condenado à morte não apenas porque era solidário, mas principalmente porque lutou por justiça e, por isso, incomodou os podres poderes da religião, da política e da economia.

A lógica de democracia formal e representativa é outro Grande Inquisidor do povo ao vender a ideia mentirosa de que basta votar em eleições com regras que beneficiam “os de cima” para se chegar à democracia real, econômica e social. Cruel ilusão, pois entra eleição e sai eleição e o tal de fulano ainda é pior ...

O sistema capitalista, máquina de moer vidas, é O Grande Inquisidor Mor, pois sequestra a terra no campo e na cidade em propriedade privada capitalista como base para promover o capital superexplorando a dignidade da pessoa humana, da classe trabalhadora e da classe camponesa. A manutenção da latifundiarização no campo brasileiro e da especulação imobiliária nas cidades são bases materiais objetivas – Um Grande Inquisidor Mor - que reproduz a inquisição, a repressão, a violência e o enforcamento do povo cotidianamente, de muitas formas.

Na sociedade capitalista O Grande Inquisidor inquire, tortura, faz guerra e mata em nome de Deus. Eis um exemplo: um cozinheiro dos freis carmelitas, em Houston, descendente de latino-americanos, foi soldado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Em julho de 1997, todo piedoso, com camiseta de Nossa Senhora de Guadalupe e escapulário no pescoço, toda vez que me via, pedia para eu o abençoar. Devoto piedoso, um dia me disse: “Na Guerra do Vietnã, eu era soldado paraquedista. A gente pulava do avião e já caía no meio de uma comunidade e eu, com a metralhadora na mão disparava à vontade. Só eu matei mais de 500 vietnamitas”. Quando o cozinheiro piedoso me disse isso, estarrecido, eu perguntei a ele: “Você não se arrepende de ter matado tanta gente?” Ele, altaneiro, me disse: “De jeito nenhum. Estávamos lá no Vietnã em nome de Deus, éramos os defensores de Deus. Guerreávamos contra os comunistas ateus e filhos do demônio.” O cozinheiro piedoso meteu a mão no bolso e me mostrou uma nota de dólar onde estava a inscrição “we trust in God” (Nós acreditamos em Deus). E acrescentou: “Se não fôssemos nós lá na guerra contra os vietnamitas, o demônio teria tomado conta do mundo, pois para eles “a religião é ópio do povo.” Naquele momento, percebi que os capitalistas se dizem pessoas religiosas, mas na prática são grandes inquisidores cotidianamente, abstratamente dizem que acreditam em Deus, na prática são idólatras, pois matam irmãos como Caim.

Entretanto, a história demonstra que o Grande Inquisidor não tem a última palavra. Os Grandes Inquisidores são jogados na lata de lixo da história e quem faz e entra para a história são os torturados e matados pelo Grande Inquisidor. Nessa linha, o germe da revolução que superará o capitalismo, essa máquina feroz de moer vidas, está inoculado em Assentamentos para milhares de famílias acampadas na luta pela reforma agrária, está nas Comunidades Indígenas, Quilombolas e muitos outros Povos Tradicionais que enfrentam O Grande Inquisidor cotidianamente. Só em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, 30 mil famílias se libertaram da cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor construindo 30 mil casas em 119 ocupações, enfrentando o Tribunal, jagunços, tropa de choque, resistindo a despejos e construindo “debaixo pra cima e de dentro pra fora” uma cidade que caiba todas e todos. Assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia, todos/as que são submetidos a processos inquisitoriais também ressurgem, combatendo o bom combate e construindo esperança e lutas inspiradoras pelo bem comum. Sigamos na luta como discípulos/as de todos/as que foram vítimas do Grande Inquisidor, seja no poder religioso, político ou econômico.

20/10/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Francisco de Assis nos inspira e nos interpela - Por frei Gilvander - 20/10/2020

2 - Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020

3 - Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

4 - Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear - 05/10/2020

5 - Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. - 08/9/2020

6 - Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

7 - Não jogue agrotóxicos na terra/agricultura familiar/agroindústria. Assentamento Padre Jésus. Vídeo 6

8 - O que as mineradoras estão causando em Minas Gerais? Por Frei Gilvander, em Live, da ADUENF - 23/7/20



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação

Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020.

Fonte: Canal no youtube - Campanha Permanente contra os Agrotóxicos.

Celebrando o dia mundial da alimentação, 16 de outubro de 2020, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, em conjunto com outras organizações brasileiras e internacionais, convidou para o encontro virtual com Vandana Shiva: "Soberania Alimentar: resistência e organização dos camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais". No diálogo com a ativista ecofeminista Vandana Shiva e representantes de movimentos e organizações sociais do Brasil e Argentina, foi abordado o panorama de crescente insegurança alimentar e a perda de soberania nos países de capitalismo dependente ou periférico, agravados pela pandemia, pelas estratégias da agricultura ultra-mecanizada e por governos capitalistas neoliberais conservadores. E como os diversos povos constroem estratégias de organização solidária desde o local até o global.


Edição e Divulgação: Frei Gilvander Moreira, da CPT, das CEBs, do CEBI, do SAB e da assessoria de Movimentos Populares, em Minas Gerais.

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Sugerimos. #DespejoZero #ÁguasParaaVida #BarragemNão #FreiGilvander #NaLutaPorDireitos #PalavrasDeFéComFreiGilvander #PalavraÉticacomFreiGilvander

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Francisco de Assis nos inspira e interpela. Por Frei Gilvander

 Francisco de Assis nos inspira e interpela. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Que foto SENSACIONAL! O pássaro azul, ao lado do pássaro escultura, olhando para São Francisco tão atentamente como se de fato o ouvisse. Um raro e feliz flagrante de Jim Frazier.
ET : Esta escultura foi feita  dor FRANK C. GAYLORD  e se encontra na cidade de CHICAGO- ILINÓIS/EUA.

Um autêntico discípulo de São Francisco de Assis me perguntou: “O que significa Francisco de Assis para você?” Francisco de Assis me inspira e me interpela muito. Diante de Francisco de Assis, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, pois de tão humano se tornou santo, um irmão universal.

Em contexto de violência social, onde o poder religioso encontrava-se em conluio com os poderes econômico e político para assim oprimirem ainda mais os empobrecidos, Francisco de Assis não apenas fez Opção pelos Pobres, mas se tornou um pobre, um “menor” entre os menores: os leprosos da época, os que eram mais excluídos e execrados como impuros e terrivelmente discriminados. Francisco abandonou todo o luxo e as regalias da vida em uma família nobre. Francisco carregou sempre em si a ternura e o amor infinito da mãe dele, o que o ajudou a compreender que Deus nos ama infinitamente. Francisco pulou do cavalo e não aceitou participar de guerra para ampliar o poder econômico do pai fissurado para lucrar no comércio. Ele ficou do lado dos rebeldes de Assis, na região da Úmbria, Itália.

Na sua infinita ternura, Clara foi uma anja humana ao lado de Francisco de Assis. Com postura altaneira, Clara, ao se recusar a aceitar os ditames do poder patriarcal presente no seu pai e no seu tio, deve ter reforçado em Francisco a coragem de romper com tudo o que o aprisionava. Com olhar firme, Clara refutou a ordem do pai e do tio que queriam lhe impor um casamento: “Não cabe a você, tio, e nem a meu pai, determinar se casarei e com quem”. Francisco nunca acreditou em cruzada e nem em nenhum tipo de guerra que para ele nunca poderia ser santa nem justa. Francisco acreditava na força do amor e jamais no poder das armas. Para ele, “só o amor constrói”. Francisco teve a grandeza humana de romper com seu pai patriarcal e autoritário, adepto do mercado idolatrado e da escravidão a tal ponto que chegou a amarrar o próprio filho Francisco com correntes em um tronco e ainda teve a cara de pau de acusar o filho Francisco diante do bispo e de toda a nobreza: “A única coisa que meu filho sabe fazer é explorar o pai, após começar a andar com um “bando” de leprosos”. Porém, Francisco viu mais profundamente: “Eu tenho outro Pai que é Pai de todos nós e quer que eu seja o último entre os últimos. Por isso renuncio a todos os meus direitos sobre seu nome e sobre seus bens”. Que maravilha de postura! Francisco abriu mão do status, do prestígio e do poder, do luxo, da nobreza e da herança. Aliás, herança é uma das armas de reprodução da desigualdade social. Especialmente na sociedade capitalista em que vivemos o mínimo que devia existir é o imposto sobre herança com alíquota de 50% e destinado às áreas sociais para melhorar a vida do povo empobrecido. O justo seria a herança ser partilhada entre todos os filhos e filhas – a sociedade inteira - e não apenas com os filhos de uma família nuclear.

No início do Século XIII, em contexto religioso de negação do ensinamento e da práxis de Jesus revolucionário, Francisco de Assis se apaixonou pelo Evangelho de Jesus Cristo e tornou-se um feliz caminhante, pobre, humilde, que buscava sempre consolar os aflitos. Francisco sempre foi faminto e sedento de justiça, misericordioso, puro de coração, construtor de paz, perseguido por causa da justiça, insultado, caluniado, e, por isso, feliz e contente (Cf. Mt 5,1-12). Ele seguiu à risca o Evangelho que diz “Vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres,[...], venha e siga-me” (Mt 19,21),  foi para onde ninguém queria ir: para o meio dos leprosos, passou a viver com eles, os abraçava e beijava, dormiu em pocilga (chiqueiro), inclusive. Esse exemplo de Francisco de Assis foi vivenciado por Che Guevara, argentino, médico e revolucionário. Esse homem foi imprescindível e, quando percorria a América AfroLatÍndia, che­gando a um leprosário na selva amazônica, foi advertido pela freira responsável para não entrar em contato com os leprosos, a não ser com luvas, para evitar contágio. No entanto, Che Guevara achava que não podia obede­cer às ordens da irmã, pois não queria que a sua atitude de prevenção aumentasse neles o sentimento de exclusão. Por isso, de noite, sem luvas, ele ia e abraçava os leprosos e os acolhia como irmãos. Estes choravam de emoção, porque Che os respeitava como gente. Não houve nenhum contá­gio. Pelo contrário! Melhorou o ambiente, que se tornou mais fraterno e, por isso mesmo, mais cristão. Francisco dizia: “Lepra, minha melhor mestra!” Assim como Jesus de Nazaré, Francisco de Assis convivia com as pessoas impuras, excluídas e discriminadas.

Para Francisco de Assis, fé em Deus exigia fé em si mesmo e na força espiritual dos violentados da história e na natureza, que é sagrada. No meio de tantas injustiças, Francisco ouviu o mais profundo da mensagem divina: “Agora, vá, Francisco, e restaure minha casa que está em ruínas”. Mais do que uma igrejinha local o que estava em ruínas era a igreja acumpliciada a podres poderes da política e da economia. Francisco descobriu que para ser fiel ao chamado de Deus precisava estar junto aos leprosos. Dizia ele: “Somos todos leprosos, mesmo escondendo nossas chagas. Deus nos ama tanto, mãe, apesar de nossas chagas, que se doou a nós na cruz nos mostrando todas suas chagas”.

É preciso recordar que o “hábito” usado por Francisco era a roupa dos leprosos, “dos irmãos em situação de rua”, era roupa de saco, “chita” da época, muito diferente do hábito franciscano ou carmelita de hoje, que pode soar como status. Francisco e seus irmãos maltrapilhos foram expulsos do seu território. “Não queremos você, Francisco, e este bando de maltrapilhos em nossas terras”, ameaçavam os cavaleiros do poder repressor. Um cardeal, tipo O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, tentou dificultar o acesso de Francisco e seus irmãos ao papa: “Quatro maltrapilhos! Sua santidade não perderá tempo com esses quatro maltrapilhos.”

Francisco dizia: “Se ninguém estiver disposto a dar o primeiro passo e se ninguém tiver a coragem de perdoar, essa guerra não acabará”. Ele se referia à guerra das cruzadas. Hoje, a guerra que nos assola é aquela na qual o sistema capitalista mancomunado com as transnacionais e as elites subservientes à idolatria do mercado impõe aos povos e territórios, ameaçando exterminar a vida humana sobre o Planeta Terra. Uns trezentos anos antes do iluminismo e do mercantilismo, que levaram à absolutização do indivíduo branco, europeu e capitalista ao afirmar os direitos individuais, Francisco de Assis já compreendia e testemunhava que o ser humano não é superior aos outros seres vivos na natureza. Ele aprendeu e cultivou uma espiritualidade universal, ao ver que “todas as terras são santas”, não apenas Jerusalém, e se encantou com a beleza e a sacralidade de toda a natureza. Por isso, para Francisco todos os seres vivos e integrantes da natureza são irmãs ou irmãos: “irmão sol”, “irmã lua”, “irmã água”, “irmão fogo”, “irmã e mãe terra”, “irmã morte”, ...

Nascido no ano de 1182, após viver apenas 44 anos, dia 03 de outubro de 1226, Francisco de Assis partiu para a vida plena e há 800 anos segue renascendo, inspirando humanidade nos corações de milhões de pessoas. E também nos interpelando sempre. Dois anos depois de sua morte, foi reconhecido como santo pelo papa Gregório IX, não porque fez milagres extraordinários, mas porque se humanizou plenamente e já era reconhecido pelo povo que teve a graça e a responsabilidade de conviver com ele. Enfim, Francisco de Assis se tornou outro Cristo e, ao ver, vivenciar e irradiar a espiritualidade de Francisco, Clara se tornou outra Maria Madalena. Por isso e muito mais, Jorge Bergoglio, ao ser escolhido papa, preferiu que fosse chamado de Papa Francisco[2].

06/10/2020.

Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado acima.

1 - Marcus Viana - Francisco de Assis (Álbum Completo)

2 - Leonardo Boff sobre o livro "Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova Primavera na Igreja"

3 - Terra, Teto e Trabalho: a Verdadeira Alegria e a Economia de Francisco e Clara, com Leonardo Boff

4 - Chico Alencar e Leonardo Boff falam sobre ecologia e espiritualidade!

5 - Ética & Ecologia - Desafios do Século XXI - Os 4 p



 

 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III – Instagram: gilvanderluismoreira (Frei Gilvander Moreira)

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.